Escritas
Desde que os teclados nos invadiram a vida que a escrita nos surge assim amarrada ao tec tec ritmado dos dedos a martelarem o plástico.
Reconhecemos-lhe os estados de alma pelo som que faz esta percussão semi-intencional.
As hesitações e reflexões feitas silêncio, os sussurros breves frases rítmicas em tons mais calmos.
No meu caso, mais que o preencher sucessivo do écran, é o som e a materialidade das teclas que me orienta o pensamento.
O movimento dos dedos a invocar esse momento da intenção inicial que antecede a construção da palavra mas que encarna já o deslizar do pensamento.
E neste contacto frio com o som seco das batidas talvez tenha vindo a perder a liquidez aquática e quase incorpórea da escrita desenhada à mão, leves arabescos deslizando sobre o papel.
Ganhei no entanto força, raiva, intenção, reforçada pela luta constante das ideias com a matéria das teclas que bloqueiam e impedem a progressão do movimento iniciado: uma barreira cuja função é imprimir o pensamento no branco virtual do monitor, tornando-o visível e real(?).
E é curioso pensar como a original dança das letras desenhadas sobre o papel, a tinta que desenha a palavra sobre a matéria se transformaram assim num movimento de ataque compulsivo e ruidoso para gerar um texto cuja realidade é no fundo perfeitamente virtual.
A subversão das regras ou o fechar do ciclo?
Felizmente que o discurso, a linguagem e as palavras resistem a tudo.
Reiventando-se em cada um dos mundos.
Capazes de nos surpreender mesmo nos meios mais hostis.
Obrigado Aharat por me teres posto a pensar nisto no comentário a um post anterior!
5 Comments:
At 09 setembro, 2005 10:33, Zé Maria said…
Num Agosto remoto, que ao contrário do deste ano foi calmo e descontraído no escritório, dediquei-me a fazer um curso de escrita no teclado. Demorei mais alguns meses a ter uma escrita automática, sem olhar para o teclado. Actualmente, sinto-me um pouco um pianista das palavras. Penso nelas e surgem no ecrã, quase sem pensar no movimento autónomo dos dedos. Isso trouxe-me uma grande liberdade de escrita, reduziu-me largamente o cansaço na vista e nas costas - olhar para o teclado é um movimento muito cansativo, ao fim de algumas horas - e, sobretudo, quase fez desparecer o ruído de martelar sobre as teclas. Quando usas todos os 10 dedos para escrever, o martelar desaparece. É que o mindinho (muito utilizado) não tem a mesma energia cinética que o indicador ou o seu vizinho.
Estiquei-me um bocadinho, mas foi com boa vontade.
Beijinhos.
ZM
Recomendo vivamente esse investimento.
At 09 setembro, 2005 10:47, sgs said…
é verdade, seria um investimento vantajoso. No entanto, devo confessar que gosto realmente deste martelar nas teclas. Imprime mais intenção ao que escrevo e por vezes embala-me as palavras.
Idiossincrasias...
At 09 setembro, 2005 15:26, Anónimo said…
Tendo em conta a época de seca extrema, ou severa (não sei qual a pior, mas são duas classificações cientificas de seca), atrevo-me a considerar que o teclado semeado de verde, seja a solução milagrosa para as sementeiras do momento. Com a vantagem da transferência para os donos de teclados dos subsídios até aqui pedidos pelos chamados agricultor-subsídio-dependentes da seca, da chuva a mais, do vento suão e da falta de imaginação.
At 09 setembro, 2005 16:10, jordi said…
Pois eu cá sou um fervoroso teclista, cacafoneando notas literárias umas atrás das outras, interrompidas pelo compasso da barra dos espaços.
E depois, é preciso mudar de teclado de vez em quando...
At 09 setembro, 2005 17:13, Anónimo said…
e neste teclado que tenho à minha frente,onde escrevo também com o mindinho como o ZM, ondulado, torto, supostamente anatómico poderia plantar uma panóplia de ervas de cheiro consoante as curvas do "terreno", virando a salsa para o sol - s, colocando o mangericão ao meio - M e os coentros na zona numérica mais à sombra. O tec-tec da tecla transformado num tchumc-tchumc de enxada na terra e um almoço de lamber os dedos ...
beijos e ternuras
mãe
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