Dias mãeores

um blog de mãe para recuperar o tempo perdido em dias sempre mais curtos que o desejado

quarta-feira, fevereiro 13, 2008

A rainha da noite



Quando as luzes se acendem há um momento de ilusão inicial em que o glamour invade o espaço do palco:
a maquilhagem irrepreensível,
os olhos de pestanas postiças e sombra carregada em tons de verde,
a pele cuidada e macia,
a cabeleira morena de caracóis largos e soltos,
a tiara e o colar de brilhantes,
os reflexos da boa branca a combinar com o vestido imaculado,
os sapatos de salto agulha para noites verdadeiramente especiais.

Mas dura apenas um segundo.
A crueza dos holofotes rapidamente revela a impostura requerendo coragem e determinação para enfrentar a plateia.
Os cinquenta e quatro anos cumprem-se na semana que vem e o corpo já não é o que era.
Uma barriga de cerveja deforma o vestido branco coberto de missangas e lantejoulas. As medidas mudaram e agora o vestido, magnífico, já não aperta nas costas. Em vez do fecho, uma fita de seda improvisada num laço comovente e desajeitado une, de forma precária e descuidada, as duas margens, deixando as costas nuas sob o escrutínio do público.
O uso esgaçou partes do tecido e rompeu a racha que, agora, sobe acima da linha das nádegas deixando a nú umas cuecas de homem pretas e deslocadas. Nos braços há tatuagens de outras guerras que contradizem a máscara feminina.
Se ao menos o palco estivesse na penumbra, a construção da ilusão poderia durar mais uns minutos.
Ainda assim os muitos anos de transformismo tentam soltar a diva ao som da banda sonora. Perante os olhos atónitos da plateia, uma Dalida reinventada dança e canta em trejeitos exagerados. O playback imperfeito é disfarçado pela profusão de movimentos e à medida que o tempo avança, e as músicas se sucedem, os poucos momentos de glória começam a desvanecer-se de forma confrangedora.
Ao fim de 30 minutos, a Dalida (que entretanto já foi Ágata e mulher traída) é nitidamente uma caricatura triste e desolada de si própria.
O homem, tantos anos a pisar o palco como mulher, já não é nem uma coisa nem outra.
Este é o seu território de glória e para ele/ela, nada mais parece importar.
As luzes cruas e duras iluminam-no só do lado do público, ele/ela, no seu enleio, parece não ver mais do que o mito do seu esplendor e continua a pavonear-se em poses de prima dona.
Nem a consciência da barriga de cerveja, das tatuagens de marinheiro em portos de má morte, do vestido esgaçado a mostrar mais do que intimidade intencional, parecem desfazer-lhe a memória do que já foi, e tenta voltar a ser aqui, neste espaço pequeno e pouco dado à criação de ilusões.
E perante tudo isto o grotesco instala-se dos dois lados:
na "falsa" diva, como complemento da personagem que já não sabe sair do palco por não conseguir habitar nenhum outro lugar de destaque,
no público, como catalizador do confrangimento, numa repentina sede de sordidez.
E enquanto ele/ela solta um discurso brejeiro de má revista à portuguesa, línguajar baixo de trocadilhos básicos onde o riso se convoca pela referência sexual e sexista, pela insinuação e provocação, pelo achincalhamento pessoal e alheio, pelo estereótipo, o público, pelo seu lado, incita, entuasiasma-se qual turba sedenta de mais exposição e hipérbole.
Talvez seja o mesmo sentimento mórbido pela desgraça alheia, que leva as pessoas a ver acidentes de perto, aquele que move os gritos de incitamento à continuação da mascarada, ao crescendo da brejeirice e nudez pública.
E eu, que sinto que passei de um filme do Almodovar para uma revista brejeira num qualquer bar de beira de estrada, só me apetece sair dali e não participar mais no incitamento colectivo à vergonha pública.
Demasiado consciente da dificuldade daquela criatura em abandonar um palco que lhe concede a ilusão de uma glória tão precária como as costas do vestido atadas com um laço improvisado, demasiado consciente da necessidade que o colectivo tem de encontrar bodes expiatórios para as suas frustações, medos e fantasias, demasiado consciente de que, ali sentada, ainda que indignada e confrangida, não sou mais que um participante passivo nos dois lados do palco.
(reflexão a partir de um espectáculo de transformismo no cabaré Evoé)

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1 Comments:

  • At 19 fevereiro, 2008 16:45, Anonymous Anónimo said…

    Em consultadoria de envio electrónico de IRS ao tio Amândio, acabámos por visitar os "Dias Maiores". A tia Nelinha queria matar saudades. É com esse objectivo que se nos depara a "Rainha da Noite". Ela leu e comentou: - Parece que foi escrito por escritor. O seu espanto e surpresa agradável pela qualidade da escrita, ditou-lhe a frase simples mas a mais adequada que encontrou. Achou que quem escreve assim é mesmo um Escritor. Daqueles que temos na estante. Eu sorri. Concordei, senti o orgulho natural e reafirmei que ser um escritor era isso mesmo. Escrever assim. Parabéns filha.
    Bjs
    Paimica

     

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