Dias mãeores

um blog de mãe para recuperar o tempo perdido em dias sempre mais curtos que o desejado

quarta-feira, fevereiro 20, 2008

A Guerra


imagem Teatro D. Maria II

A peça decorria já na segunda parte quando o quadro eléctrico disparou.
No meio das negociações de rendição do exército inimigo, cena cheia de gente em palco e texto elaborado e eloquente, a escuridão caiu repentina, como um fechar de pano transparente e sem marcações.
Durante uns segundos ninguém soube bem como reagir.
O público na sua dúvida básica (será que isto faz parte da cena?), os actores na inquietação do imprevisto (será que vai demorar muito tempo?).
E é curioso como de repente, com o prolongar deste tempo inquieto e incómodo, os corpos dos actores começaram a desenhar claramente as dúvidas que os assolavam.
Nos pequenos movimentos involuntários, nos acenos de cabeça, na perda da postura, no vaguear do olhar, ainda que ninguém ousasse sair do sítio previamente marcado pela composição de conjunto, a ilusão cénica desfez-se aos poucos em perguntas mudas mas dolorosamente visíveis para a plateia atenta (e confortável, porque do outro lado):
que fazemos? desfaço a postura? onde anda o director de cena? chamem os técnicos? dêem-nos instruções? saberei recuperar o diálogo no ponto em que caiu? é para interromper? é para continuar? isto hoje não está a correr nada bem! Secalhar devíamos ter continuado! mais valia fecharem o pano! não me posso esquecer de dar comida ao gato!...
E foi aqui que a guerra verdadeiramente se desenrolou, no espaço do imprevisto que despiu os actores perante o público pois na perda da força dos personagens surgiram os homens e mulheres por detrás do actor e o público não conseguiu deixar de hesitar entre a empatia solidária (que, apesar de tudo, prevaleceu) e o desencantamento que acontece quando se tornam demasiado visíveis os instrumentos de encantar.
Quando finalmente tudo se resolveu e as luzes reconduziram os seus focos para A Guerra de Goldoni, a outra guerra, silenciosa e sorrateira tinha já feito as suas vítimas.
Pois ainda que todos os actores tenham retomado os seus discursos e deixas com convicção e empenho, nos seus rostos a inquietação instalara-se inexoravelmente e na plateia a capacidade de acreditar tinha aberto as suas brechas.
De tal forma que o agradecimento final durou apenas uns instantes, com a necessidade de alívio proporcionada pela verdadeira queda do pano (aquela que, finalmente, permitia suprimir do escrutínio público as dúvidas que contracenavam no palco) a ditar os ritmos da despedida e a desenhar as linhas de expressão facial.
Ainda que não hajam cortes de energia todos os dias, e portanto a experiência de guerra não seja tão rica, se puderem, não deixem de passar por lá.

Etiquetas:

3 Comments:

  • At 20 fevereiro, 2008 12:23, Anonymous Anónimo said…

    Na verdade, houve algo de mágico nesse romper de «papel de cenário». O momento da falha eléctrica perdurará na minha memória. O resto da peça... quem sabe?

    E foi nesse momento que «A Guerra» se tornou verdadeiramente Fria...

    J

     
  • At 20 fevereiro, 2008 19:10, Anonymous Anónimo said…

    também lá estive. foi maravilhoso.

     
  • At 23 fevereiro, 2008 03:34, Blogger Luis Barros said…

    No momento em que a luz se apagou, houve um sentimento geral de não havia condições para seguir com o espectáculo naquele momento e temia-se o pior, o seu cancelamento o que felizmente não aconteceu. E não foi por vaidade do género "Não represento sem luz" foi porque não queríamos enganar o espectador fingindo que estava tudo bem quando na realidade não estava. Nessa cena havia 3 ou 4 memórias no guião de luz e duas entradas musicais, uma delas que incluia a dança dos "camponeses" no final da mesma. O som e a luz funcionam a electricidade. Como sabem, um espectáculo teatral não lê apenas através das interpretações dos Actores, o cenário, a luz e o som são determinantes para completar a semiologia do mesmo. É no conjunto destes elementos que é dada a leitura da peça. E claro, se o espectador pagou o bilhete, deve ter direito a tudo e não ser vítima de fraude. O Teatro não se pode dar ao luxo de enganar os seus espectadores como.... deixem-me lá pensar... o Futebol por exemplo onde o espectáculo perde constantemente a sua magia devido à corrupção e outros jogos sujos de bastidores. O Teatro deverá ser sempre uma arte honesta. Fizemos o nosso melhor em tentar manter a dignidade do espectáculo no momento do corte de luz, mas embora muita coisa funcione a electricidade, os actores não. Somos humanos e temos os nossos comportamentos apesar de todos os la que estavam nessa cena tentaram manter o melhor possível as suas posturas profissionais. Mas não quisemos enganar ninguém. Sim, a magia perdeu-se, mas para nós pareceu-nos inevitável. Só gostaria que percebessem isso. Quanto à qualidade do espectáculo, são livres de terem a vossa opinião, pois mais do que entreter, o Teatro deve sempre convidar cada espectador à reflexão e à discussão de ideias. De qualquer forma, obrigado por terem ido ver "A Guerra". Saudações Teatrais

    Luís Barros

     

Enviar um comentário

<< Home