Dias mãeores

um blog de mãe para recuperar o tempo perdido em dias sempre mais curtos que o desejado

quinta-feira, junho 23, 2005

Onde fica a realidade?


(Praia do Madeiro - Pipa)

A luz entrou timidamente ainda não eram 5 da manhã.
A noite precoce do Equador desemboca num dia madrugador, ainda o sono não se libertou das pestanas.
Saltei da cama de impaciência na disposição de explorar o local e mergulhei de chofre num calor húmido e envolvente.
Àquela hora só a chilreada enlouquecida dos pássaros fazia adivinhar que o mundo acordara.


(Praia do Madeiro vista do hotel - Pipa)

Tudo me pareceu mais promissor apesar das nuvens que ameaçavam mais chuva: a praia avistada do alto da falésia despejava a selva no mar até perder de vista, os bichos no seu despertar eufórico enchiam o ar de sons estranhos e aguçavam a curiosidade, os chalets e demais construções do resort, miscigenados com o verde circundante, pareciam mais genuínos e bonitos, a cerrada mata atlântica que envolvia o espaço, vislumbrada do alto do mirante, confirmava as razões da escolha do local.


(chalet - Village Natureza)

Respirei fundo.
Um colibri esvoaçou de repente, na sua frenética forma de beijar as flores.
Nem tudo estava perdido!


(café da manhã)

Depois de um "café da manhã" verdadeiramente retemperador o dia foi passado a explorar as redondezas.


(Pipa)

O desconsolo e desalento anterior foram cedendo espaço ao olhar curioso e inquiridor que sempre transportamos connosco quando viajamos.
As contradições e assimetrias adivinhadas na noite anterior lá estavam mas tudo ganhava contornos mais reais e verdadeiros.


(Pipa)

Afinal de contas não esperávamos nem queríamos um bilhete postal de agência de viagens pelo que o contacto com a cacofonia urbanística nos devolveu um olhar realista, crítico mas, estranhamente, apaziguador e estimulante.


(Pipa)

Pipa, apesar de destino turístico (e dos destinos que o turismo lhe tem reservado), não deixa de ser um lugarejo com a genuinidade dos espaços onde as gentes vivem e habitam.
Basta sair da rua principal para perceber que a vida decorre e transborda muito para além das fronteiras desenhadas para o europeu em viagem.
E, apesar de tudo estamos no Brasil, o que quer dizer que mesmo o espaço embelezado para o turismo guarda muito da sua alma transgressora de desarranjo e despreocupação.
As pousadas lado a lado com as pequenas casas, as lanchonetes e botecos de par em par com os restaurantes mais bonitos, as vendinhas e mercadinhos com víveres dependurados, um pouco por todo o lado.


(Goianinha)

De chinelo no dedo, camiseta de alças, homens e mulheres deambulam pelas ruas de terra batida carregando todo o tipo de coisas.
O movimento é cadenciado e ondulante, com o chinelar a ditar o ritmo e o tempo a decorrer numa outra lógica.
Vêm-se velhos, novos, miúdos, na soleira das portas em conversas arrastadas. Aparentemente a pressa não faz parte do vocabulário local e todos parecem esperar descontraídos o escorrimento das horas.
Oi seu moço, não precisa corré né?


(Tibau do sul)

As casas apresentam um colorido gasto pelas muitas chuvas (muitas vezes só na fachada) e uma pequenez impressionante.
A maioria delas são chácaras, sem vidro nem mosquiteiro nas janelas, que deixam entrever o interior de duas ou três divisões apenas, em escassos 20 m2.
Todas apresentam no entanto uma antena parabólica (a globalização portas adentro) ainda que as paredes sejam muitas vezes de adobe em equilíbrio precário.


(Chácara com parabólica)


(Chácara)

Nos pequenos lugarejos o casario acumula-se em torno das ruas sinuosas, talhadas ao sabor das necessidades, sem plano.
Pela estrada fora vêm-se casas esparsas, arrumadas um pouco ao acaso pelo meio dos coqueiros, por vezes em torno de pequenos terreiros de terra batida onde languescem miúdos, mulheres, homens e velhos nesse seu modo sorridente de deixar estar.


(venda)

Parece um mito esta história do ritmo tropical, dengoso, descontraído, quase despreocupado. E no entanto, mesmo no confronto com as histórias sofridas de quem tem 3 empregos por dia para poder "levar", subsiste uma sensação de surpreendente (e mesmo desconcertante) apaziguamento.
Vai fazê o quê seu moço?! tem qui si virá, né? A vida é prá levá!


(Travessia do rio Ceará-Mirin)

É preciso dizer que apesar da probreza do Nordeste (onde a diferença entre o litoral turístico e mais desenvolvido e o interior de Sertão seco e despovoado é gritante) a zona de Pipa, com o seu turismo e fazendas, oferece muitas mais oportunidades de trabalho. talvez por isso seja uma das regiões menos violentas do Brasil (Natal, a capital do estado do Rio Grande do Norte, onde fica Pipa, foi considerada recentemente a capital mais segura do Brasil).
Aqui o medo é o da "baixa", época em que o charter não aterra é época em que a vida se torna mais difícil.


(os tocadores da balsa - Tibau)

Porque na verdade "tem sempre com o que se virar": as hortas nos fundos das casas dão tudo o que nelas se semear, as ruas, os mercados, as praias, oferecem oportunidades intermináveis de negócio, o mar é uma fonte abundante de alimentos. Como dizia o Alexandre, resumindo o espírito da terra: aqui só passa fome quem for preguiçoso!


(Maracajaú)

A criatividade é premissa das gentes locais, se não há emprego, arranja-se qualquer coisa para vender e trocar: de manhã vendem-se côcos na praia, brincos, pulseiras, pesca-se taínha, à tarde conduz-se o transporte público local, trabalha-se na fazenda, conduzem-se buggys, faz-se de guia, à noite serve-se num restaurante, distribuem-se folhetos ou fazem-se tatuagens.


(Pipa)

É que neste aparente rame-rame faz-se muita coisa sem perder o tempo para prosear e a capacidade de rir do mundo.
Talvez seja esse o segredo.

E é neste contacto entre as imagens do paraíso prometido e o paraíso possível que se constrói a realidade.
Reais os dois afinal, o do postal e o outro.
Criadores, na sua contradição complementar, de uma atmosfera estranhamente cativante.
Que enfeitiça quem por cá está (ou aqui chega) e dificulta a vida a quem quer contar como foi.



Perdoem-se portanto se os próximos relatos não obedecerem a uma lógica cronológica (olhá cacofonia!) nem forem completamente perceptíveis racionalmente.
Na verdade, ao fim do primeiro dia de imersão verdadeira operou-se uma transformação particular que nos deixou presos às gentes, ao local, ao clima, de forma inexorável e inexplicável arredando as reservas iniciais para um qualquer recanto da História antes do Achamento.

5 Comments:

  • At 23 junho, 2005 20:25, Anonymous Anónimo said…

    A vida é prá levá, mêmo. Só que aos pedacinhos. A gente queria, mas a "gente tem que se virá". Daí que o melhor da vida são os intervalos como este, que são mesmo os tais dias maiores.
    Bjs

     
  • At 23 junho, 2005 20:52, Anonymous Anónimo said…

    Elle m'a fait la soif! diriam os franceses, Ela deixou-me com água na boca, digo eu. Nunca, até agora, tinha pensado no Brasil como destino turístico. Agora QUERO IR. Nem tanto pelas fotos, mas sim pelo bilhete postal com cheiro, sabor, textura, calor e cor com que nos brindas no teu texto. Ainda bem que sou mãe de uma filha destas!...
    Mil beijos
    mãe

     
  • At 24 junho, 2005 09:40, Blogger sgs said…

    Epá, isto assim está a começar a ser uma responsabilidade do caraças!

     
  • At 24 junho, 2005 10:28, Blogger montanhacima said…

    E ainda bem, que eu sou o irmão o tal que dá sentido ao vocábulo: manamagana.


    Só mais uma nota: já pensaram que o paraíso com que todos sonhamos deveria ser um local bem triste, só com dois seres humanos, uma macieira e uma cobra linguaruda...

     
  • At 30 junho, 2005 16:02, Blogger Pedro Veiga said…

    Que lindo texto (e fotografias)! Ao lê-lo parece que se sente o calor, a humidade, o cheiro, os sons, as cores destas magníficas paragens equatoriais brasileiras. É reconfortante ler este texto num dia de trabalho, entre os afazeres rotineiros! Parabéns pela história.

     

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