Uma farmácia no mangal
(bares de praia - Tibau do sul)
Entrados no ritmo pouco frenético do meridiano local, afastados os medos infundidos por muitos anos de relatos de violência gratuita em paragens brasileiras, começámos a abandonar as trilhas traçadas para os protugueses em turismo e decidimos passar a andar de transportes públicos.
A linha Pipa-Tibau-Goianinha é feita com pequenas carrinhas de 16 lugares carinhosamente designadas por "van" na gíria local.
- Seu moço olh'aí, vê si não vai falá autocarro! Aqui só tem ônibus e vans! (risos)
As vans, que passam com intervalos de 20 minutos (embora estes intervalos possam ter durações muito variáveis - deve ser do fuso horário!), têm todas um golfinho para serem identificadas e páram sempre que alguém lhes esticar o braço (o que quer dizer que pode ser de 10 em 10 metros). Levam oficialmente 16 pessoas e oficiosamente as que couberem (podem ser 25!), mas ainda assim são o transporte mais fiável e mais fácil de utilizar para quem quer andar de terra em terra a qualquer hora do dia e da noite.
Posto isto, lá "pegámos a van" para Tibau para um encontro marcado com o Farmácia que nos levaria de caiaque para meio do mangal na lagoa de guaraíras.
Chegámos cedo à praia de Tibau, onde a balsa transporta os carros para o outro lado, e o mar entra terra adentro misturando-se com a água doce da lagoa.
(caiaques do Farmácia - praia de Tibau do sul)
(entrada da lagoa)
A praia de mar revolto é um pequeno pontão de areia semeado de bares em barracas de madeira coloridas, ainda fechados a esta hora matutina. O cheiro a mar envolve intensamente o local e a confluência de ondas em direcções diferentes cria remoínhos e correntes que não nos descansam muito (afinal de contas a entrada na lagoa teria de ser feita pelo mar e a ondulação visível não era muito convidativa).
(bares na praia)
Chegado o Farmácia, homem seco de carnes, musculatura bem delineada e corpo saudável tisnado pelo sol, começaram os preparativos para não perder a maré. A entrada na lagoa faz-se com maré cheia para aproveitar a corrente. A duração do passeio ronda as 3 horas para beneficiar da leve correnteza que a maré vazante provoca nas águas à saída do estuário. É preciso evitar as balsas que cruzam o canal várias vezes ao dia.
Tudo bem pensado e controlado como mandam as lides do mar.
(Balsa)
O passeio começa com a ondulação costeira a testar o nosso equilíbrio.
Farmácia é homem calmo, sossegado, de trato franco e amigável, infundindo-nos confiança.
Os primeiros ressaltos rapidamente se tornam divertidos e o passeio começa imediatamente a valer a pena.
(já depois dos primeiros balanços)
A lagoa é ampla e povoada por vários tipos de barcos, na sua maioria de pesca. As águas, protegidas, na sua peculiar conjugação doce-salgado, são refúgio para inúmeras espécies em período de desova.
No entanto está hoje em dia circundada por dezenas de fazendas de camarão (o Rio Grande do Norte tornou-se recentemente o maior exportador de camarão de água doce) que lhe irão poluindo lenta mas inexoravelmente as águas até ao dia em que não houver retorno.
Por enquanto a biodiversidade ainda se mantém por aqui e o mar, que entra em golfadas neste estuário, vai-se encarregando de renovar as águas.
A erosão encarregar-se-á de alargar a entrada do estuário como já o fez anteriormente.
Na verdade, Guaraíras foi realmente uma lagoa até aos anos 60, altura em que a erosão acentuada do mar e das chuvas fez colapasar finalmente a barreira que separava o doce do salgado e obrigou a deslocar a aldeia para o alto da colina.
(início do mangal seco - ao longe - e molhado)
O passeio faz-se de forma calma, na cadência ritmada das pagaias e o seu chapa-chape melodioso na superfície da água.
Chape-chape .... chape-chape ...
A leve corrente a facilitar-nos a vida e a deixar tempo para o silêncio contemplativo ou a prosa agradável.
Os salpicos a aliviarem o calor.
A chegada ao mangal é emocionante.
As árvores com as suas raízes aéreas a fazerem o bailado sobre as águas, os caranguejos a treparem troncos acima, o chape-chape no meio dos ramos a perturbar a calmaria do local.
É fácil esquecer o tempo e deixar escorrer os minutos sem pressa.
Pelos muitos caminhos verdes e entrelaçados vêem-se garças negras (socós), garças brancas, caranguejos, guarda-rios, andorinhas das falésias, taínhas saltadoras.
As três horas prometidas alongam-se, fazem-se maiores e o embalo da água torna-se um prolongamento natural do nosso corpo.
Aaaaaahhhhhh vida boa!
Lisboa fica a anos-luz de distância...
(garça negra - socó)
O regresso à praia faz-se ao ritmo de cada um:
Farmácia atlético e vigoroso, S. entusiasta e contemplativa, J. pachorrento e satisfeito.
As ondas da praia permitem prolongar e apimentar um bocadinho mais a parte final da viagem.
Chegamos mais ricos e esfomeados, e a conselho (sábio!) dos locais preparamo-nos para um belo pitéu no bar do Adriano, paredes meias com a barraquinha dos caiaques.
(lagosta grelhada no bar do Adriano - uma especialidade da região)
E para mudar de assunto, desvendamos o mistério: porquê Farmácia?
Porque o carioca que temos em frente se mudou para esta região há vinte anos atrás, altura em que tudo eram lugarejos perdidos do mundo, sem serviços nem farmácias.
Por este motivo o Farmácia muniu-se de toda a sorte de medicamentos e afins que lhe permitissem enfrentar os achaques do corpo sem grandes sobressaltos.
Com o tempo a informação correu de boca em boca e a população passou a consultá-lo quando precisava de minorar os sofrimentos e maleitas.
O nome de origem (que nós também nunca chegámos a saber) perdeu-se para sempre e o rebaptismo fez-se através do atributo que para todos tinha sido a grande mais-valia do carioca.
Sô Farmácia, com muito orgulho!
(as fotografias da canoagem foram todas tiradas por ele - aqui fica a homenagem!)
2 Comments:
At 24 junho, 2005 17:19, Anónimo said…
A descrição do passeio levou-me a caiacar na lagoa, a sentir o reboliço da ondulação, o cheiro dos manguais e o chilrear da passarada. Tudo como se estivesse mesmo lá, com a pagaia na mão. Com a intensidade da narrativa até senti fome. Fechei os olhos e esperei que a lagosta começasse a satisfazer o apetite desperto. Concentrei-me na ânsia de que descrição também me levasse a sentir a degustação do crustáceo. Forcei a interiorização do possível sabor e do prazer até que senti algo. Não foi mais que uma frustante sensação de água na boca. Assim não vale...
At 25 junho, 2005 12:34, JNM said…
ai, ai (arrastado e suspirado...intensamente)
Poupa-me que eu já não aguento mais...
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