O Anjo agónico
Ainda me lembro da primeira vez que assisti a um bailado ao vivo.
As circunstâncias não eram as melhores: com um electroencefelograma marcado para o dia seguinte, o meu pai tinha a dura incumbência de me manter acordada o máximo de tempo possível e resolveu levar-me ao bailado (seguido de longas conversas pela noite dentro já com um olho aberto e outro fechado, pobres progenitores!).
Teria eu 6, 7 anos?
Disso já não me lembro bem, mas das três peças, apresentadas no D. Maria, e daqueles corpos elásticos que se contorciam no palco, lembro-me como se fosse hoje.
Nessa altura, como todas as miúdas, as minhas paixões estilísticas dirigiam-se aos frus-frus, às sapatilhas de ponta, aos vestidos brancos de saias de tule esvoaçantes, e o meu paradigma de beleza ao Lago dos Cisnes. Foi por isso um momento mágico ver um excerto das Sílfides, brancas, esvoaçantes, harmoniosas.
Mas houve neste espectáculo outra revelação que me marcou para o resto dos dias. Para além destes movimentos, os bailarinos podiam também contorcer-se de forma aparentemente desordenada e magnífica, com fatos coleantes que lhes deixavam os músculos a descoberto em desenhos extraordinários de força e beleza.
Numa das peças um anjo é ferido de morte.
A sua agonia transformou-se num conjunto de movimentos desesperados de luta e submissão.
As grandes asas que lhe prolongavam os membros e o impeliam para cima não foram suficientes para o salvar e o final da coreografia passou-se no chão, terrífica e terrenal.
E se este primeiro contacto não televisivo com o bailado se fez com a Companhia Nacional, a formação complementar nos anos seguintes fez-se com o Ballet Gulbenkian.
A partir deste momento, todas as temporadas me encontravam sentada no balcão expectante, ansiosa pela surpresa do próximo programa.
A dança moderna conquistou definitivamente as minhas preferências e quando as luzes se apagavam e a dança invadia o palco eram os movimentos vigorosos, lânguidos, suaves, nús e crus que me deixavam fascinada.
O despojamento da dança moderna rapidamente superou os frus-frus e o Ballet Gulbenkian tornou-se o marco, o espaço de todas as aprendizagens e fruições.
Não sei durante quantos anos não perdi uma temporada. Houve peças que vi mais de 3 vezes - Danças com Espíritos, Sergeant Earlier Dreams, Jardim Cerrado... -, coreógrafos que me faziam comprar o bilhete com antecipação ansiosa e bailarinos que me suscitaram paixões assolapadas.
Tantas destas peças e suas memórias se cruzam com a minha vida de formas de tal forma idiossincráticas que se tornaram marcos temporais pessoais difíceis de destrinçar e explicar.
O Ballet Gulbenkian atravessou praticamente todos os anos da minha vida, da primária à Faculdade, e quando há uns anos retomei esta frequência regular da temporada voltei a sentir que a qualidade extraordinária dos bailarinos imprime uma unicidade insuperável a esta companhia no panorama nacional.
Quando ontem soube a notícia de que o Ballet Gulbenkian terminava não quis acreditar.
Morreu de morte não anunciada.
Dói-me esta extinção não esperada.
Cresce-me uma tristeza funda.
Morre-me parte da vida, das memórias, das aprendizagens.
Desapareceu uma fatia insubstituível da vida cultural nacional.
E é por isso que me retorna a imagem do anjo moribundo em estertores de dor e impotência.
O corpo branco, moldado e agonizante, a mancha vermelha no peito a tingir-lhe aos poucos as asas que o impedem de voar.
O desespero iluminado no palco.
Desce o pano.
Fim.
Como diz José Saramago, no Memorial do Convento:
"Que os homens são anjos nascidos sem asas, é o que há de mais bonito, nascer sem asas e fazê-las crescer.
Isso mesmo fizémos com o cérebro, se a ele fizémos, a elas faremos."
Saberemos fazer crescer novas asas?!
13 Comments:
At 06 julho, 2005 13:02, Anónimo said…
Um pesadelo. Estou revoltada, estupefacta e muito assustada.
(O que se seguirá na Fundação?)
At 06 julho, 2005 14:09, Anónimo said…
e eu a acreditar que portugal tinha sido da pasmaceira...
ana de ny
At 06 julho, 2005 17:39, Anónimo said…
e o anjo de Carmina Burana (um dos bailados que viste naquela noite, com 6 anos)nem agonizou, morreu simplesmente e subitamente. Também me doeu e dói. Como é possível assassinar assim uma coisa tão bela, um dos ex-libris da fundação?
At 06 julho, 2005 18:55, Manel said…
Alguém sabe fazer aquelas petições na net? Vamos mexer-nos. Nos espectáculos é que é tempo de contemplarmos, calados e extasiados com uma das melhores companhias do mundo - muito mais do que Lisboa alguma vez mereceu. Agora é tempo de berrar.
NÃO PODE SER! QUEREMOS O NOSSO BALLET GULBENKIAN. QUEREMOS A NOSSA LIBERDADE. QUEREMOS AS NOSSAS ASAS!
At 06 julho, 2005 23:59, JNM said…
Isso não é possível. O que posso fazer para tornar isso impossível?
o Ballet Gulbenkian? Vai acabar?
Tá tudo doido! Já somos um país onde as artes e artistas não vêm a luz ao fundo do túnel e essa Fundação resolve acabar com o Ballet...o nosso "bolshoi"?
Não consigo acreditar que tal seja possível. Não consigo aceitar....
At 07 julho, 2005 03:38, Anónimo said…
Vamos avançar com a petição na net ou com um abaixo assinado.Precisa-se de ajuda para começar.
Como são os procedimentos?
Espalhem a notícia: pelos amigos, colegas, vizinhos, conhecidos...
Ainda não consigo acreditar, que de repente 9 pessoas tenha decidido algo desta natureza.
Porque o ballet Gulbenkian, há muito que deixou de pertencer a um grupo restricto de pessoas, ele é NOSSO, pertence aos nossos percursos, PERTENCE-NOS!!
Gritar e gritar em conjunto!!
At 07 julho, 2005 08:52, Anónimo said…
Já temos uma petição nas Trutas. Por favor, passem por lá e deixem comentários e/ou sugestões!
Está aqui: http://theamazingtroutblog.blogspot.
com/2005/07/proposta-de-texto-para-
petio-contra.html
At 07 julho, 2005 16:46, Anónimo said…
Enviei o seguinte texto ao serviço de bailado da FG http://www.musica.gulbenkian.pt/ballet/
Quem não sentir inspirado pode renviá-lo para o mesmo site
À Administração da Gulbenkian
Caros Senhores,
Os meus parabéns pela vossa decisão de extinguir o Ballet Gulbenkian.
Conseguiram V.Exas. liquidar de vez um enorme capital de cultura (provavelmente pertencem a um meritoso grupo anti capitalista) e contribuir para o generalizado conjunto de crimes contra o Espírito que ora em Portugal se estão cometendo. Alguém me disse que se o Sr. Calouste Gulbenkian (um Senhor arménio que era patrono das artes, sabem?) tivesse conhecimento da vossa sábia decisão se revoltaria no túmulo. Discordo: pessoalmente penso (se tal verbo ouso utilizar depois do uso que V.Exas. certamente lhe deram antes de tomar tão sensata decisão) que se o dito Senhor tomasse conhecimento da medida ficaria mui quieto com receio de vir, também ele, a ser extinto. O que, aliás, era merecido pois se ele não tivesse vindo para Portugal V.Exas teriam sido poupadas às desagradáveis manifestações de repúdio pela opção tomada que se começam a sentir um pouco por todo o País. Na verdade, para que precisamos de arte em Portugal? Bastam-nos os "bimbos da Koltura" e os "patos bravos do conhecimento".
Como disse um conhecido general franquista "quando ouço falar em cultura, saco logo do revólver". Viva la muerte?
A Gulkenkian (a Santa Fundação como costumava chamar-lhe) era conhecida por ser a grande patrona das artes em Portugal. Ironia da História:V. Exas. ficarão na crónica por um articídio.
Que a Santa Consciência dê a V. Exas os melhores sonhos.
J.A.
At 07 julho, 2005 19:22, Anónimo said…
Esta nova forma de comunicar que são os blogs é muito boa, mas deve ter os seus limites. Do meu ponto de vista, claro, deve ser um local onde trocamos opiniões, enriquecemos o conhecimento, nos divertimos, enfim trocamos experiências. Esta introdução vem a propósito de alguns comentários feitos a partir de um sensível e muito bonito texto sobre a relação da autora com o Ballet Gunbenkian e da desilusão e choque pela seu fim. Mais uma vez em meu entender, comentários como o da carta à Adm da F.G.,só revelam falta de bom senso, irrealismo, radicalismo e uma desnecessária agressividade. Aliás o comentador devia ter o bom senso, de sob anonimato, não o fazer num blog doutra pessoa, que não tem , nem nunca teve essa linguagem. Falar em "bimbos da Koltura" já era pedante e mau, agora, referir o general franquista e a frase "viva la muerte" é demais. Só alguém que viva noutro mundo, irreal e fantasmagórico, pode escrever tais aleivosias.
Caro anónimo, aconselho-o a ler o editorial de"O Público" de hoje. Vai ter uma opinião, com qualquer outra, mas sensata e pedagógica. Já agora, eu também sou dos que lamento muito o sucedido, mas os membros do C.de A. da F.C.G. terão as suas razões. Mesmo que não concordemos com elas, elas são legítimas. É a eles que compete gerir a fundação. E só quem está no convento sabe o que lá vai dentro. A F.C. GF. só gasta. Não vende nada. Não busca o lucro. Tem é de viver com o que tem, como deve ser conosco. Certamente que o dinheiro que tiver para gastar na cultura, vai gastá-lo. Só que será de outra forma, com outra política, outra estratégia. É essa a missão de qualquer administração.
At 08 julho, 2005 23:52, Filipa said…
Nao!!!
Vim ao teu blog a estas horas nocturnas para ver um bocadinho de luz e eis-me aqui com a lagrima ao canto do olho...
Que horror!
Vai acabar!?! Mas como assim?!? A que proposito?! Com que direito!?
Esse pais esta de pantanas e agora ate as coisas bonitas nos tiram!!
Mas esta tudo louco!?!?
Nao ha nada que se possa fazer???
At 09 julho, 2005 14:35, Manel said…
Paimica:
acredite, de quem está dentro do convento, que as razões do CA são iníquas, mesquinhas e totalmente desprovidas de visão ou consciência cultural. Trata-se, deveras, de um articídio.
At 10 julho, 2005 12:25, Anónimo said…
Existe uma petição on line dirigida ao CA da FCG que os/as interessados poderão subscrever
http://www.petitiononline.com/bg05ext/petition.html
At 14 janeiro, 2010 19:06, Pé na estrada said…
Antes de saber que eras tu, lembro-me de ter lido este texto e ter ficado abismada com a forma simples e apaixonada como expressaste os teus sentimentos, que transbordam em cada palavra que se lê!! De verdade...
Acho que foi este e mais 3 ou 4 textos que tens aqui que me deixaram de queixo caído...
O curso, juntamente com isto e mais algumas conversas sobre ti com outras pessoas fizeram-me ter vontade de te conhecer melhor. O acaso ajudou e agora aqui estamos.
É um privilégio ser tua amiga, obrigada!
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