Dias mãeores

um blog de mãe para recuperar o tempo perdido em dias sempre mais curtos que o desejado

segunda-feira, outubro 17, 2005

Oriente-Ocidente



Corri esbaforida passeio fora na tentativa de atrasar os ponteiros do relógio. Maldice todos os semáforos que se puseram vermelhos para os peões e me atrasaram ainda mais a marcha, atravessei sem ser a minha vez esquivando as buzinadelas e reclamei contra todos os carros mal estacionados em cima do passeio que me obrigavam a múltiplos ziguezagues.

Tinha marcado uma massagem com pedras quentes e frias porque precisava muito de relaxar e encontrar tempo só para mim e por isso corria agora deitando os bofes pela boca.

Lá dentro a moça tailandesa acabava de deixar o último cliente deitado na calidez do gabinete e saíra com pezinhos de veludo para descansar um bocadinho antes da próxima sessão.
E foi aí que entrei de rompante numa lufada de desassossego.
Era preciso esperar, o último cliente chegara atrasado e ainda estava a descansar.
Vermelha, suada e esbaforida reprimi mais uma maldição e tratei de resolver mais uns assuntos ali perto enquanto não chegava a minha vez.
Descansar na sala de espera não me dava jeito e assim ainda tinha tempo de ir pagar umas coisas ao multibanco e telefonar para o trabalho a dar umas últimas instruções.
Vinte minutos depois voltei a entrar com ar de urgência, ainda vermelha das múltiplas correrias.

Já estava tudo a postos e mandaram-me entrar no espaço minimal do gabinete, com som de água corrente e pétalas espalhadas pelo chão.
Foi aí que me lembrei que secalhar era melhor ir à casa de banho antes e pedi para voltar a sair esbarrando com a pacata moça tailandesa e espalhando o conteúdo da mala pelo chão. Dez maldições reprimidas e mais de cinquenta idas e vindas por causa das coisas caídas depois, pude finalmente entrar e respirar fundo.
Agora é que é, pensei, e esforcei-me por me colocar em estado zen.

O espaço estava na semi-obscuridade, uma música suave soava baixinho e uma pequena fonte fazia o som da água a correr que já tinha ouvido antes. O chão e a marquesa tinham pétalas vermelhas espalhadas de forma harmoniosa e o tempo parecia correr a outro ritmo dentro da salinha aquecida.
Mandaram-me despir e deixaram-me só.

Ao princípio foi fácil (despir-me eu sabia) mas depois começaram as dúvidas: devia vestir o roupão para estar mais composta (não me apetecia ficar ali meia nua)? E depois como é que ela faria a massagem, teria de me despir outra vez? Deveria ficar assim à espera dela? Devia deitar-me?
Optei por deitar-me na marquesa de roupão e esperei fazendo respirações profundas para me preparar para o momento de escape.
Quando ela entrou retirou-me o roupão e começou a mexer nas pedras.
O traquetear da pedras a baterem umas nas outras dentro de água deixou-me curiosa e com vontade de olhar mas obriguei-me a ficar quieta, expectante, enquanto milhares de ideias começavam a povoar os meus pensamentos.
O repentino contacto frio na pele cortou momentaneamente este chorrilho de pensamentos centrando-me nas sensações.



O posicionamento das pedras era curioso pois obedecia aos chacras e mais uma vez o cérebro se lançou à desfilada: para que serão as pedras? porque serão frias? isto é um bocadinho desagradável assim frio. Será que vai ficar assim muito tempo? O que é que é suposto sentir? Será que é para a pessoa relaxar e se preparar para o resto da massagem?

Quando me apercebi de que o meu cérebro não parava procurei fazer exercícios respiratórios novamente e abstrair-me dos pensamentos. Foi aí que comecei a sentir frio e que ela me começou a massajar com óleo e com pedras quentes e frias.
As sensações eram estranhas, alternando entre o conforto e o desconforto. O frio persistia e eu não conseguia abstrair-me disso.
Deveria dizer alguma coisa? Seria normal?

As mão pequeninas, leves e suaves da massagista contrastavam com o meu corpo grande e desajeitado ali deitado numa marquesa à justa para mim. Senti-me dividida entre dois tempos, o ritmo frenético dos meus pensamentos e a calma suave e metódica da massagem.

Procurei abstrair-me do desconforto durante alguns instantes e entregar-me a essas mãos de movimentos circulares. Mas como as sensações continuavam a deixar-me dividida entre o prazer e o desprazer recomecei a pensar noutras coisas.
E assim enquanto ela me estimulava os chacras e me aplicava uma terapia de relaxamento eu revi o trabalho da semana, as coisas que ainda precisava de fazer, os planos para o fim-de-semana, os amigos a quem já não falava há muito tempo, as coisas de que não me podia esquecer até que ela me bateu levemente no ombro e me disse que estava na hora de me virar para baixo.

Nesta posição a minha cabeça encaixou numa ranhura da marquesa que me deixava ver duas flores dispostas num arranjo simples, tudo pensado para infundir a sensação de calma, harmonia e beleza.

Esforcei-me então por voltar a fechar os olhos e fruir o momento mas os olhos não se mantinham fechados nem 10 segundos e começaram a explorar o que era possível através da ranhura: as tomadas eléctricas, as toalhas dobradas, os pés da bancada, os pés pequeninos e sinuosos da terapeuta na sua dança em torno de mim, as pétalas do chão.

Quando terminou, a moça sussurrou-me que podia ficar ali o tempo que quisesse a descansar e desapareceu com pés de lã.
Fiquei ali, quieta, a perguntar-me que horas seriam,quanto tempo é que uma pessoa deveria ficar ali, se haveria duche para tirar os óleos, se me viriam chamar.

Como ninguém aparecia vesti-me e saí para a sofisticada zona da recepção.
O óleo no corpo fazia comichão e tornava a roupa incómoda, a massagem deixara-me inchada e com uma sensibilidade dolorosa.
Seria normal?

Tentei parecer relaxada e quando me perguntaram se tinha gostado e se tinha sido bom disse que sim.

Ofereceram-me chá verde na pequenina salinha de espera onde corria água numa fonte japonesa de pequenos seixos rolados.
A moça tailandesa nunca mais voltou a aparecer e eu continuei ali bebendo o meu chá verde, a tentar parecer relaxada e a pensar nas horas, no que ainda tinha para fazer e no que deveria ter sentido lá dentro, tão deslocada como uma cegonha no meio de pardalitos.

Despedi-me, abri a porta que me protegia do bulício exterior e uma vez lá fora, determinada, caminhei rapidamente na renovada tentativa de atrasar os ponteiros do relógio.
Com passos rápidos e tenazes, ziguezagueando entre os carros mal estacionados e o som insistente das buzinas, sonhando com um momento de relaxamento em que tenha tempo só para mim... de olhos postos no Oriente. Esse mito?!

12 Comments:

  • At 16 outubro, 2005 23:19, Blogger ana ventura said…

    Fiquei cansada só de ler o texto! Apercebi-me que susanaste e não descansaste! Pelos visto uma experiência a não repetir!

     
  • At 17 outubro, 2005 11:57, Anonymous Anónimo said…

    se...
    caminhar com calma e passo certo pela rua, olhar para cima, ver naquela janela uma senhora de cabelos brancos e roupão cor-de-rosa que nada mais tem para fazer que olhar as gaivotas em volutas no ceu azul e branco, (mar encrespado? ou apenas vontade de sobrevoar a cidade?)ver aquela escada sinuosa enferrujada num prédio forrado a azulejos que já foram verdes, encontrar dois fósseis desconhecidos na fachada do prédio da esquina, chegar repousada a pensar no que tinha observado no caminho. Entrar, sentir o cheiro dos óleos, encher os olhos com o vermelho das pétalas, perguntar naturalmente como vai ser e deixar-se ir, sem pensar na vida cá fora, na correria, nos carros que não nos deixam atravessar a rua, dizer sinceramente: - não gosto das pedras frias! deixar-se massajar, fechar os olhos e não ter vergonha das sensações, esquecer tudo e sentir somente o corpo, perguntar sem qualquer problema: - posso tomar um duche? não gosto da sensação dos óleos debeixo da roupa. Será que seremos capazes, nós que não fomos habituados a estar de bem conosco mas sim a agradarmos à sociedade? Julgo que estou finalmente a adquirir a serenidade que me permitirá usufruir desse bem estar "zen". Talvez por isso haja quem diga que a idade traz coisas boas...
    mãe

     
  • At 17 outubro, 2005 13:29, Blogger jordi said…

    Isto anda tudo um bocado desOrientado...

     
  • At 17 outubro, 2005 13:49, Blogger Zé Maria said…

    Se calhar o problema é a expectativa com que partimos para esse tipo de experiências. Eu vou, às vezes, a um Osteopata muito divertido, chamado "Mestre Fernando", que me deixa absolutamente relaxado e rejuvenescido. Ao contrário da grande produção oriental a que te sujeitaste, o Mestre Fernando tem um gabinete um bocado suburbano, embora bem no centro de Lisboa, e a música é pimba do pior, mas venho de lá outro homem. Às vezes acho que saio de lá mais alto, mas deve ser só por vir com os ombros mais erguidos.
    Se um dia quiseres fazer uma experiência Ocidental, eu posso-te dar o contacto.
    Beijinhos.
    ZM

     
  • At 17 outubro, 2005 14:40, Anonymous Anónimo said…

    Será que o oriente idílico não passa apenas de uma construção nossa? Uma construção tão idílica que os orientais aprenderam e deram-se ao trabalho de a tornar real para nós. À custa de resultados catastróficos, como as lojas chinesas e seus sucedâneos (para não falar das implicações sociais e económicas no oriente), e de nos provocar sensações opostas às que supostamente deveriamos sentir. Para a próxima vez, experimenta relaxar numa loja onde te apeteça comprar alguma coisa (não importa que seja banal roupa ou acessórios ou um interessante livro ou cd). Gastas o mesmo dinheiro e se calhar ficas surpreendida com o relaxe que um momento de puro consumismo ocidental pode proporcionar...

     
  • At 17 outubro, 2005 16:23, Anonymous Anónimo said…

    Por te teres sentado ao computador e teres partilhado a tua aventura na blogosfera, com o mundo conhecido e desconhecido, não relaxaste mais do que às mãos da pequena tailandesa (que muito provavelmente até era chinesa)?

     
  • At 17 outubro, 2005 23:35, Blogger JNM said…

    Prepara-te melhor.

     
  • At 18 outubro, 2005 10:24, Blogger jordi said…

    Acho que o Ahraht tocou na ferida...

     
  • At 19 outubro, 2005 16:55, Anonymous Anónimo said…

    Exactamente: os milagres só acontecem se nos prepararmos para eles.

    Ando a preparar-me para, daqui a uns tempos, mergulhar na acupunctura. (Será que é desta que consigo debelar os meus males físicos?)

     
  • At 20 outubro, 2005 13:40, Blogger Pedro Veiga said…

    Nesta sociedade frenética temos cada vez menos tempo para o essencial: saber relaxar e aproveitar o dia a dia. Coisas simples mas que não sabemos colocar em prática.

     
  • At 20 outubro, 2005 14:47, Blogger sgs said…

    De tudo o que tem sido dito fico a pensar se não teremos todos razão: falta de preparação, mito, tensão Oriente/Ocidente, crescimento, etc.
    Só vos digo que esta experiência foi estranha pois a minha relação com o Oriente não é de hoje e até agora tem resultado sempre. O yoga e a acupunctura são por exemplo duas das áreas em que transição da inquietude para a calmaria para mim se processa amis facilmente.

     
  • At 21 outubro, 2005 16:55, Anonymous Anónimo said…

    A mim pareceu-me que a tua (vossa) experiência de convívio com o pequeno Gabriel, te relaxou bastante.
    Porque é que não tentas arranjar mais um fim-de-semana para nos vires fazer uma visita, desta feita em Beja... Mudámo-nos no Sábado, ainda temos a casa em pantanas, mas já não falta muito para estar tudo organizado...
    Beijinhos.

     

Enviar um comentário

<< Home