Cheiros maternos
Começa aqui um pequeno ciclo esporádico de textos escritos pela minha mãe sobre a memória dos cheiros e a identidade.
Textos que pela sua qualidade merecem engrandecer estes dias que já adivinham a primavera.
Cheiros 1
O mato tinha sido roçado no sobreiral e enchia agora o quintal da minha avó Carlota fazendo nascer uma cama fofa para os patos, galinhas e perús e para os nossos pés calçados com botas de borracha para não nos picarmos no tojo.
Também porque eram mais baratas que as outras… O perfume do mato fresco e húmido com alguns pedaços de rosmaninho e alecrim aqui e ali, envolvia-nos naquele cheirinho de fim de férias, de chegada de Outono, enquanto nos imaginavamos saltimbancos-acrobatas duma cama elástica improvisada.
Uma escada de ripas de madeira encostada à parede do palheiro servia de trapézio à Zézinha, a maior trapezista de todos os tempos que imitava na perfeição os bonecreiros que tinham passado na aldeia nesse Verão anunciando ao megafone o "Grande Espectáculo no Largo da Estrulibânia".
A Zézinha que nunca tinha aprendido a andar, só a correr, percorria toda a rua pulando dum lado e doutro da valeta e não gostava nada, mas mesmo nada, de ter cabelo encarnado. Das sardas não se importava...
Na esquina da rua à porta da loja do meu avô a Maria da Rosa Rita vendia hortaliça e queixava-se da vida... era o genro que tinha partido uma "travincula" ... era ela que andava doente e tinha ido fazer "anausas"… e o dinheiro escasseava… para o médico, para as análises, sim, que isso de segurança social seria coisa que a Maria da Rosa Rita nunca viria a conhecer.
Boa mulher, a Maria da Rosa Rita.
Chegava com o burro carregado de nabos, couves, alfaces e cenouras cheirando a terra molhada e sentava-se numa cadeira que o meu avô lá deixava de propósito. Um dia o burro mordeu-lhe e ela passou bastante mal.
A partir daí eu comecei a ter medo de andar de burro e quando ía às pinhas com a Bétinha escarranchava-me sempre na parte de trás... até um dia … o burro escorregou e eu fiquei sentada no caminho de terra...
A Bétinha vivia em Santarém e vinha passar férias a casa da avó Aurélia. Deu-me o privilégio de mascar a primeira pastilha elástica da minha vida e de toda a vida da aldeia... usava calças à pirata … e mais importante que isso tudo, tinha um arco de Hula-Hoop em que ambas éramos peritas.
Horas a fio: - da cintura para o pescoço, do pescoço para a mão, da mão para o pescoço, do pescoço para a cintura, sem deixar caír o arco amarelo.
Textos que pela sua qualidade merecem engrandecer estes dias que já adivinham a primavera.
Cheiros 1
O mato tinha sido roçado no sobreiral e enchia agora o quintal da minha avó Carlota fazendo nascer uma cama fofa para os patos, galinhas e perús e para os nossos pés calçados com botas de borracha para não nos picarmos no tojo.
Também porque eram mais baratas que as outras… O perfume do mato fresco e húmido com alguns pedaços de rosmaninho e alecrim aqui e ali, envolvia-nos naquele cheirinho de fim de férias, de chegada de Outono, enquanto nos imaginavamos saltimbancos-acrobatas duma cama elástica improvisada.
Uma escada de ripas de madeira encostada à parede do palheiro servia de trapézio à Zézinha, a maior trapezista de todos os tempos que imitava na perfeição os bonecreiros que tinham passado na aldeia nesse Verão anunciando ao megafone o "Grande Espectáculo no Largo da Estrulibânia".
A Zézinha que nunca tinha aprendido a andar, só a correr, percorria toda a rua pulando dum lado e doutro da valeta e não gostava nada, mas mesmo nada, de ter cabelo encarnado. Das sardas não se importava...
Na esquina da rua à porta da loja do meu avô a Maria da Rosa Rita vendia hortaliça e queixava-se da vida... era o genro que tinha partido uma "travincula" ... era ela que andava doente e tinha ido fazer "anausas"… e o dinheiro escasseava… para o médico, para as análises, sim, que isso de segurança social seria coisa que a Maria da Rosa Rita nunca viria a conhecer.
Boa mulher, a Maria da Rosa Rita.
Chegava com o burro carregado de nabos, couves, alfaces e cenouras cheirando a terra molhada e sentava-se numa cadeira que o meu avô lá deixava de propósito. Um dia o burro mordeu-lhe e ela passou bastante mal.
A partir daí eu comecei a ter medo de andar de burro e quando ía às pinhas com a Bétinha escarranchava-me sempre na parte de trás... até um dia … o burro escorregou e eu fiquei sentada no caminho de terra...
A Bétinha vivia em Santarém e vinha passar férias a casa da avó Aurélia. Deu-me o privilégio de mascar a primeira pastilha elástica da minha vida e de toda a vida da aldeia... usava calças à pirata … e mais importante que isso tudo, tinha um arco de Hula-Hoop em que ambas éramos peritas.
Horas a fio: - da cintura para o pescoço, do pescoço para a mão, da mão para o pescoço, do pescoço para a cintura, sem deixar caír o arco amarelo.
1 Comments:
At 29 março, 2006 09:40, Anónimo said…
obrigada minha querida pelo presente que me deste esta manhã. Um regresso a outras manhãs longínquas em que os dias eram tão maiores...
adoro-te
mãe
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