Sobre a minha pele navegam barcos...
Protopoema
Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
(...)
José Saramago
(in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)
1 Comments:
At 18 maio, 2006 17:52, Zé Maria said…
Belíssimo poema. Adorei.
Que tal vai a nova maison?
Beijinhos.
ZM
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