adultície
Quando era pequena as vacinas eram um medo permanente.
Pela dor da injecção, pelo temor do desconhecido, pela vergonha pública que era estar no posto de vacinas com todos os miúdos lá da rua e não conseguir segurar as lágrimas, pelo pudor de mostrar o rabo para a injecção com toda a gente conhecida a ver (que seja no braço, que seja no braço, desejava muitas vezes sentada na sala de espera a olhar os outros miúdos, provavelmente a desejarem o mesmo).
Ainda me lembro por isso do dia em que a vacina foram só três gotas na língua e o mundo me pareceu maravilhoso.
O posto era longe de casa, tinha azulejos típicos dos anos 70, com grandes figuras geométricas e cartazes infantis nas paredes.
Lá fora, um descampado cheirava a mato seco e acentuava a angústia de quem espera.
Há visões que nunca perdi e esse mato amarelo, restolho quebradiço a dobrar-se ao vento, era a imagem perfeita da vontade de fugir.
Por tudo isto o boletim de vacinas funcionava como uma lista de condenações.
Nele, escritas a cores várias, surgiam as datas marcadas para os suplícios futuros.
Um destino ineludível e anunciado.
Neste boletim, no entanto, residia também a única forma de redenção possível.
Algumas datas sugeriam momentos tão distantes no tempo que me enchiam de uma esperança tonta de já ser tão crescida nessa altura que não teria medo da vacina.
Eram uma espécie de prova de crescimento que me convenciam de que o medo era coisa pueril que o passar dos anos se encarregaria de dissipar.
Na verdade, praticamente nenhum adulto que eu conhecesse levava vacinas e, seguramente, se o fizesse não parecia tremer de medo e de ansiedade.
No liceu passei uma vergonha tremenda no posto médico por causa do teste da tuberculina (arranjei todas as desculpas para poder não ir vacinar-me com a minha turma mas não me safei de um mau bocado difícil - os adolescentes não são alvo da compaixão das enfermeiras como as criancinhas!)
Na faculdade as vacinas voltaram e o medo manteve-se incólume.
O ano 2000, uma das datas maravilhosamente distantes que habitava o meu boletim de infância, mostrou-me que o medo só se controla mas nunca desaparece.
A vergonha, essa aumenta exponencialmente e alimenta, inexoravelmente, o mito da adultície.
5 Comments:
At 13 junho, 2007 16:25, Andrea said…
Fantástico! Poderia ter sido eu a dizer exactamente isto. Só não conseguiria escrevê-lo tão bem. :))
At 15 junho, 2007 13:57, Anónimo said…
é inspiração! Não é leitura de pensamento!!! Mas até parece. Eu nos meus 55 Verões de idade, parece que estava a ler uma coisa sentida e escrita por mim. Mas não é. Nem a pensar, nem a escrever sou assim, tão preciosamente inspirado. As gerações sucedem-se, mas o sentir às vezes é parecido.
At 15 junho, 2007 16:35, Anónimo said…
Leu o meu pensamento e o mato à volta também lá estava! Está escrito com tanta verdade que facilmente nos revemos no texto. (DRB2)
At 21 junho, 2007 16:32, Anónimo said…
engraçado como a tua vida começou e passou por mim e eu (mãe desnaturada) não me tinha apercebido desse teu grande medo da vacina. Talvez porque para mim o dia da vacina era um dia diferente. Na escola as aulas eram interrompidas, e com a manga da bata branca arregaçada lá ía de pica. Nesse dia a professora até era menos severa e com um bocadinho de sorte ficava febril no dia seguinte e em casa. A minha mãe fazia um pudim flan com aquele leite gordo acabado de saír da vaca, cozinhado em banho-de-maria num fogareiro a carvão e com umas brasas sobre a tampa para ficar igualzinho a um pastel de nata. No liceu era a fila para o posto médico e a safa a alguma chamada a história ou a geografia... Mesmo agora quando levo a vacina do tétano no gabinete médico da empresa, é novamente um interromper o trabalho, uma quebra na rotina que me agrada. Filha doce, se não me tivesses escondido esse teu grande medo eu ter-te-ía cozinhado um belo pudin flan, sem brasas mas em banho de maria....
Mil beijos
mãe
At 29 junho, 2009 22:10, vampira said…
Então e quando vai ser a próxima vacina?
Pois agora não tenho problemas com agulhas, mas quando tinha os meus 5/6 anos lembro-me que estive doente e precisava de levar umas injecções. Era a verdadeira loucura. Aproximava-se a hora e eu começava num pranto e tentava esconder-me. Chegava o enfermeiro, eu calava-me e levava a injecção. Quando ele se ia embora outra vez uma berratina pegada...
O ano passado foram vacinas do tétano, febre amarela, e mais umas quantas (viagens tropicais, enfim...) e não tive qualquer tipo de receio... fiquei foi com os 2 braços doridos pois foram 4 "picas", 2 em cada para não haver desequilíbrios....
Quando for a tua proxima vacina eu vou lá segurar-te a mão, ;)
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