Dias mãeores

um blog de mãe para recuperar o tempo perdido em dias sempre mais curtos que o desejado

quinta-feira, janeiro 17, 2008

She's not gone, she just fits so well with the furniture that she became invisible



A peça decorre num cenário que começa vazio e se vai preenchendo aos poucos, de forma obsessiva, com toda a acumulação material de coisas de que nos rodeamos para fugir ao abandono.
A matéria tornada ritual, conforto, bóia de salvação para o desalento, a incomunicação e a solidão. Um substituto para a frustração e a falta de emoções fortes.
Um casal jovem repete, ao fim de sete anos de relação, diálogos, gestos, rotinas, na angústia de saber esgotada a sua capacidade de amar. Sem a coragem de romper com o comodismo nem a ousadia de reinventar o amor, levando-o mais longe e rompendo as fronteiras tácitas (e tácticas) onde ele se encaixa e domestica.

O risco verdadeiro está ausente deste cenário confortável de sofás, estantes e mesas a combinar. Ou existe, clandestino. subterrâneo, como um lobo à espreita sem coragem de se tornar visível. Como uma suspeita, um desejo inconfessado, uma hipótese académica.
"Say, hipotetically, just hipotetically, what if i had a fling with your bestmate, what would you do? would you stay? would you go? wouldn't you even try?"

Ontem mergulhámos na peça Presumption levada ao palco da Culturgest pelos Third Angel e a experiência foi extraordinária. Agrada-me este teatro quase transparente, vívido, tão próximo como uma conversa íntima. Talvez por isso seja também mais perturbador - a intimidade tornada identidade entre público e os actores, entre história encenada e vida real. O texto dos diálogos, apesar de em inglês, é claro e inteligente, com um toque de humor que não lhe retira veracidade. O registo oscila entre o monólogo interior tornado audível e a tentativa de diálogo entre duas personagens que têm medo de comunicar a sério tantos são já os artifícios construídos para um conforto rotineiro.

Não nego que o que resulta do conjunto, ainda que numa versão com graça, é uma visão um pouco pessimista do espaço relacional entre a paixão inicial e a perda do amor. O espaço em que o I love you se substitui gradualmente por um "I don't not love you!". Ainda assim, mesmo que a nossa visão das coisas seja diferente, mais optimista, mais esperançada, a peça vale imenso a pena. Hoje é a última representação, às 21h30. Se puderem, não percam.

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