Dias mãeores

um blog de mãe para recuperar o tempo perdido em dias sempre mais curtos que o desejado

segunda-feira, março 03, 2008

a escrita que nos desenha

Lembro-me do tempo em que a escrita me surgia simultaneamente das ideias e da coreografia da mão a desenhar no papel.
Por vezes, era justamente a mão quem ditava as regras, criando ritmos, correndo veloz a vencer a inércia do papel branco e do bico da caneta. Numa luta tensa entre o ritmo do pensamento e a capacidade física dos dedos abraçados ao corpo do riscador.

Nunca tive uma letra bonita, nem quando aprendi a escrever.
Acho que esta luta permanente entre a cabeça e a mão nunca me deu tempo para aperfeiçoar o desenho das letras e elas acabaram sempre por me sair assim aos bicos, irregulares e imperfeitas.

Quando passei da primária para a preparatória esforcei-me, como quase toda a gente, por encontrar uma nova letra mais conforme à minha nova condição de não-criança.
A identidade faz-se nesse período, entre outras guerras, dos muitos ensaios de assinatura - folhas e folhas com assinaturas complexas e rebuscadas, ora inclinadas para a esquerda, ora inclinadas para a direita, povoadas de arabescos impossíveis de repetir - e da tentativa de encontrar uma linha que nos limite as palavras num desenho que nos delineie crescidos e capazes de enfrentar o mundo.

A minha passou por uns dias de bolas redondas (como todas as miúdas) até que a minha mãe se zangou comigo por estar a procurar imitar os outros em vez de procurar uma escrita própria e me reconduziu na senda de agarrar nas raízes bicudas e imperfeitas que costumavam sair das minhas canetas e transformá-las nalgo melhor mas meu (se esse era verdadeiramente o meu desejo).

Foram semanas de busca ansiosa.
E mais uma vez, páginas e páginas de letras escritas a verde, azul e roxo, ora inclinadas para a esquerda, ora para a direita, alongadas, espalmadas (tudo menos bolas redondas e desprovidas de identidade própria!), com canetas finas, canetas grossas, de feltro, bic (laranja e cristal) à procura da escrita perfeita.
Nunca percebi se a encontrei realmente, mas houve um dia em que gostando do que vi me deixei de mais demandas e adoptei os rabiscos elegantes (ligeiramente alongados e inclinados para a direita) como meus.

Nos primeiros dias o cérebro debateu-se arduamente com a mão, lenta como seria de esperar na habituação à nova escrita. Mas logo, logo a mão foi encontrando saídas, desvirtuando o bonito traço inicial na tentativa de responder ao ritmo alucinante do pensamento, e as novas linhas alongadas, elegantes e ligeiramente inclinadas, deram lugar a bicos subversivos e irregularidades que tomaram de assalto tudo o resto, nos anos que se seguiram (excepto nas cartas de amor, que escrevi abundantes, e nas quais o desenho das palavras procurava corresponder à elevação dos sentimentos)

Ainda hoje invejo as escritas bonitas que sobreviveram ao que a minha nunca foi capaz. Olho gulosa os traços doces da escrita da A. e da S. que transformam qualquer palavra numa imagem clara e bonita de si mesma.
A minha só piorou e os rabiscos que ainda faço tornam-se facilmente incompreensíveis, mesmo para mim, se não escolher canetas de traço fino e fluido que ajudem a controlar a rapidez e impaciência do gesto.
As ideias correm-me velozes e a mão nunca o conseguiu fazer ao mesmo ritmo.

Socorro-me assim do teclado e deste martelar ritmado que responde rapidamente aos impulsos e me esconde a inabilidade atrás de letras convencionais e anónimas (desculpa mãe, é a versão pós-moderna da letra redonda!).
E não consigo deixar de tirar prazer disso, perdendo inexoravelmente a intensidade da relação com o desenho coreográfico das letras no papel, as carícias da mão na caneta.

Hoje em dia, as folhas em branco intimidam-me mais que o écran por escrever.

Na verdade não sinto saudades dessa escrita mais demorada pois facilmente me embalo na cadência ritmada e reconfortante dos dedos a percutirem as teclas.

tec, tec, tec, tec, tec, tec...

As polpas dos dedos a tactearem suaves nos momentos de pausa em que o teclado respira comigo.

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4 Comments:

  • At 03 março, 2008 17:09, Anonymous Anónimo said…

    Partilho de quase tudo isso; mas nunca umas palavras a Times New Roman 12 com entrelinha 13,5 me poderão fazer saltar o coração de expectativa ao reconhecer a caligrafia da autora do texto.

    A mensagem, é certo, ficará mais clara... mas o amor não é sentimento dado a clarezas e evidências.

    Que sentido faz acariciar umas letras impressas a jacto de tinta e não lhes sentir a gravação da intensidade? Ou a vibração de saber que quem escreveu também por ali passou os dedos e deslizou a pena, num fio que se prolonga entre o autor e o leitor.

    O teclado poderá acolher e transmitir ideias ou formalidades, mas, no plano íntimo, só o correr da pena ou a palavra falada carregam sentimento (em toda a duplicidade semântica do verbo).

    J

     
  • At 06 março, 2008 11:49, Blogger Semente said…

    Adorei o post!
    Adoro as letras, os desenhos delas que cada um de nós faz e que nos distingue, de facto. Adoro escrever e adoro ler.
    Parabéns pelo blog!

    Vou voltar sempre.
    E deixo um convite a visitar o meu espaço de letras em:

    http://dasereia.blogspot.com

    P.s: tomei a liberdade de acrescentar o seu blog nos meus links mais lidos.

     
  • At 06 março, 2008 17:34, Anonymous Anónimo said…

    Estás perdoada minha doce filha. Adoro ler-te nos carateres redondos de tec,tec,tec ou nas pontas bicudas hieroglifadas dos postais, cartas ou bilhetinhos de presentes (juro que às vezes tenho que reler para os entender, mas postais, cartas e bilhetinhos só o são se escritos com uma caneta entre os dedos). Também eu passei pela letra redonda e com bolas por cima dos is. Caíram as bolinhas mas ficou um pouco do arredondamento (ainda desenho o 8 com 2 bolinhas tangentes...)e agora sinto-me bem feliz pela existência destes teclados onde os dedos podem correr quase à velocidade do pensamento, sem engasgos nem sílabas comidas pela pressa das idéias e pelo vagar das tendinites.
    mil beijos
    mãe

     
  • At 16 fevereiro, 2009 12:31, Blogger Pé na estrada said…

    Pois que belo texto e como é possível que uma pessoa se reveja tanto no que escreves... é giro...
    Mas mesmo que o teclado ajude, nada tira o prazer de receber um postal, uma carta ou uma simples mesnsagem manuscrita. Quando me enviaste o postal intitulado "guess who?", não conhecia a tua letra e pensava quem será? Só cheguei lá perto pela morada, e foi uma surpresa muito muito agradável...
    Letras bonitas, alguém as tem (eu não e a tua, provavelmente tem dias) mas nada bate as linhas que se vão desenhando no papel e deixam transparecer pela intensidade da escrita uma data de sentimentos que se podem ler e observar... Uma mensagem no computador não trasnsporta esta saca de emoções e sentimentos, porém, eu não as desdenho. Foi através dessas mensagens que te fui conhecendo e abrindo caminho para algo mais que somente um conhecimento internáutico. E assim, bem hajam os computadores, e-mails, skypes, msns, que permitem que quem está longe fique perto, mas que não deveriam fazer com que quem está perto, fique longe...
    Um abraço miga

     

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