Álbum de retratos
Quanto de memória real existirá no nosso olhar, inevitavelmente retrospectivo, sobre as fotos de infância?
Uma parte considerável destas memórias é tanto construção a partir do que nos contaram como do que ficou plasmado nestes instantâneos cristalizados ao longo do tempo e que transferimos para o arquivo de imagens da nossa autopercepção.
Eventualmente não poderia ser de outra forma, o excesso de consciência, a memória total e avassaladora de todos os instantes, de todas as experiências, de todas as imagens, daria certamente cabo de nós.
Mas se a nossa identidade se constrói na sua base primeira a partir destes relatos familiares, destes fragmentos fotográficos, quanto da nossa ideia de nós mesmos será fruto de interpretações sobre as interpretações que o tempo e as pessoas nos legaram?
Quantas leituras terei eu feito de mim mesma a partir dos frágeis processos selectivos e reconstitutivos da memória dos sujeitos que os partilharam comigo?
Quantas explicações metafísicas assentei e fundei, convicta e inteiramente, em relatos tão mutáveis e efémeros?
Talvez por isso haja dias em que me observo insistentemente, olhos nos olhos, nas fotografias de criança à procura de uma qualquer outra verdade. E encontro um olhar adulto, sério, por vezes demasiado assustador na sua excessiva seriedade para tão breves anos, que, como um espelho, mais não faz que devolver, ampliadas, as minhas dúvidas e inquietações.
Na verdade, não saberia sequer dizer se me reconheço naquela miúda de olhos inquisidores ou se, simplesmente, me habituei a ver-me nela ao longo dos anos.
Já não consigo distinguir as semelhanças de tão miscigenadas que estamos por termos crescido a olhar uma para a outra: ela imutável no papel fotográfico, eu a mudar todos os dias na dimensão temporal e efémera que me cabe viver.
Será que me reconheço nela porque me habituei a pensar que ela sou eu?
Se nunca tivesse visto uma única imagem de mim enquanto criança saberia reconhecer-me, tal como costumo reconhecer todos os outros nas suas imagens infantis?
Saberia ler os meus traços?
Aquela miúda que me espreita em cada retrato é-me demasiado familiar enquanto imagem para a conseguir ver realmente. Cresci a ouvir "olha aqui estás tu com 3 anos" e passei a ser aquela ali com 3 anos mas nunca saberei se diria espontaneamente "olha, esta aqui sou eu!" se nunca tivesse alimentado o meu arquivo pessoal com todas estas imagens prévias.
E tenho de confessar que me perturba bastante saber que parte considerável da nossa identidade se funda em premissas tão frágeis.
Quanto das nossas memórias será pura reinvenção?
Quanto da nossa consciência de nós será pura projecção?
Etiquetas: identidade, memória
2 Comments:
At 08 maio, 2008 01:36, Anónimo said…
Estava a navegar na net à procura de museus educação e avaliação quando vim aqui parar.
Mestre és mesmo tu ou estou enganada?
Se fores tu, sim senhora, muito giro o teu blog. E além disso, que bem escreve Vexa, vê-se mesmo que é Dra e não engenheira...
Se não fores tu, mantenho os elogios, mas afinal não sei quem és.
beijos moça
A florestal
At 09 maio, 2008 11:24, Anónimo said…
Quanto das nossas memórias será pura reinvenção?
A resposta nunca será exacta. Mas, a consciência e a modelagem que fomos fazendo de nós próprios, terá alguma dose de imaginação criativa, pelo que a dúvida é pertinente. Queremos ser ou somos determinada personagem? Para mim é bom e salutar que queiramos ser.
Mas, filosofia à parte, mais uma vez o texto esta muito bem escrito, como faz jus o comentador anterior.
Bjs
Paimica
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