portas travessas e opacas
Nas viagens fascina-me sempre como será a vida real das pessoas por trás das janelas e portas fechadas.
Que hiatos, que diferenças, que mistérios se desenham entre a fachada para turista ver, a percepção distorcida do nosso encontro com o desconhecido e a vida real e quotidiana das pessoas que habitam os locais visitados?
Na Holanda por exemplo, onde as janelas são amplas e despudoradamente sem cortinas, a curiosidade sempre me tornou um voyer compulsivo, sem que a plena consciência da culpa consiga deter o acto de violação do espaço privado pelos meus olhos gulosos.
Há uma única frase que vale a pena no filme estónio Baile de Outono (se alguém viu apenas o trailer tem os ingredientes suficientes para a compreensão do filme todo pois o desenvolvimento da película não é mais que o desenrolar do círculo vicioso e profundamente desinteressante das personagens disfuncionais, afundadas no isolamento e em todos os lugares-comuns do desespero e desencanto).
"Dentro de cada um daqueles caixotes há uma pessoa a tentar ser feliz."
E é esta noção, esta demanda incessante pela felicidade, a sua construção diária nos mais pequenos e rotineiros gestos e na matéria de que nos rodeamos, que me fascina e convida a violar as fronteiras ténues entre o privado e o público.
Como procuramos a felicidade? Como a concebemos? Como nos apropriamos dela e transpomos para o mundo que nos rodeia? Como a materializamos nas coisas, nos gestos, nas palavras, nas relações?
Onde acaba o artifício, a ilusão, a encenação social e começa o real?
O que é o real?
Como se o espaço íntimo que habitamos e a forma como nos movemos quando nos julgamos fora do alcance do escrutínio dos outros fossem os únicos portadores de uma verdade qualquer interior que raramente se revela ao mundo e que apenas uns olhos violadores, mas imperceptíveis aos actores destes momentos de vida real, pudessem vislumbrar.
A viagem à Finlândia foi pobre em violações voyeuristas.
O espaço privado é aqui vedado ao olhar alheio tanto nas casas como nas relações humanas. A barreira linguística é uma realidade difícil de transpor. Nunca em nenhum outro sítio foi tão vívida a noção permanente de tradução-traição. Como se o significado das coisas ficasse sempre num qualquer outro espaço para além da nossa compreensão aproximada.
A simpatia e acolhimento prestados aos visitantes, quando existe, é formal e funcional, nunca transpondo a linha da pura prestação de um serviço distanciado. Calor e contacto humano com desconhecidos só mesmo no universo da sauna onde os humores do corpo libertam alguns constrangimentos sociais mais arreigados e permitem a troca de palavras.
Acho que nunca uma viagem nos deu tão pouco contacto humano com os autóctones. Nos anais da viagem só uma vez registámos uma tarde calorosa de conversa solta com alguém que não conhecíamos: uma espanhola excepcional que nos relembrou o prazer ibérico de saborear palavras e histórias envoltas numa bebida fresquinha.
As paisagens geladas e o isolamento florestal devem ter feito florescer almas mais introspectivas e quietas, ou pelo menos um maior distanciamento face ao outro que impede a aproximação fácil (uma vez que os muitos jovens deitados ao sol em conversas animadas contrariam a tese da pura solidão e quietude).
O álcool, esse grande "amigo" da desinibição, abunda em todos os contactos sociais. Bebe-se muito. Grandes latas de cerveja nos fins-de-tarde-de-luz-interminável nos relvados, nos piqueniques a aproveitar o sol inusitado, grandes copos de litro à noite nos bares, até cair para o lado nos cruzeiros entre Helsínquia e Estocolmo onde as bebidas são tax free.
Mais que um ingrediente, a bebida parece ser uma necessidade na socialização. Uma condição sine qua non para a possibilidade de vivência de um estado de felicidade individual e colectivo. Sei que esta é uma realidade banal, espalhada pelo mundo, globalizada antes da própria globalização (provavelmente tão antiga quanto a própria condição humana) mas não deixa nunca de me incomodar a ideia de que a felicidade seja tantas vezes sinónimo de alienação alcool-induzida.
Em Tallin, que visitámos numa incursão relâmpago à Estónia, vivemos as contradições inerentes aos espaços turísticos, tornados património mundial pelo seu passado histórico e votados a um turismo contemporâneo, massificado e consumista.
Aqui, no centro histórico bem arranjado e preservado de uma cidade que se expande muito para além do olhar em adivinhados (mas não vistos) bairros periféricos cinzentos e soviéticos, a vida parece de brincar.
As esplanadas cheias, as torres e muralhas medievais magníficas, os prédios setecentistas pintados de imaculadas e perfeitas cores pastel, tudo se alia para a experiência turística perfeita da carta postal.
No burburinho babélico das gentes pouco se adivinha do desconforto do passado próximo que se visita no Museu das Ocupações e que sabemos existir nos bairros de arranha-céus impessoais da cidade actual.
A nova geração com que contactámos vive uma identidade europeia feérica de manual de Novo Cidadão Europeu que contrasta com a percepção que temos das feridas deixadas por um regime soviético demasiado recente, demasiado violento, demasiado aniquilador das vontades.
Nos mais novos há uma negação ostensiva do passado recente, como se essas raízes não tivessem importância e fossem discurso de pais e outros adultos amargurados sem qualquer ligação com a realidade do aqui-e-agora estónio.
Por tudo isto, no meio das praças de edifícios fabulosos recém-pintados de fresco, senti tanta vontade de mergulhar no interior das casas reais da cidade que se pressentia além muralhas. Sair do universo de brincar e entrar nos espaços menos perfeitos da vida de todos os dias.
Etiquetas: viagens; férias; realidade; portas
3 Comments:
At 19 agosto, 2008 17:25, Alexa said…
Também gosto muito de portas e janelas!
Visita http://porportasejanelas.blogspot.com/
Se te quiseres juntar a nós manda-me um mail para palavraseimagens@gmail.com
Bjs
At 20 agosto, 2008 14:07, Anónimo said…
Sabes, é por vezes por esse isolamento com as populações que gosto de viajar para onde tenho amigos locais e onde a turista se torna numa local pelo menos por alguns dias. Aí confraterniza com outros locais que te levam para mundos que nem sempre estão disponíveis ao mero turista.
O local por mais feio que seja torna-se especial com as boas relações humanas com que se convive, e ao invés, o mais bonito se não tem alma torna-se triste e desolador.
Eu, hoje um pouco triste...
At 22 agosto, 2008 10:31, montanhacima said…
Será o isolamento humano o preço da civilização?
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