O prazer de contar coisa nenhuma
O tempo vai passando e à falta de grandes acontecimentos para relatar, o blog parece perder-se nos meandros da rotina escorregadia de todos os dias. Como se o prazer da escrita das pequenas coisas se tivesse escondido algures numa das dobras da roupa que se acumula no quarto por arrumar e se vá acrescentando à cada vez maior lista de coisas acumuladas, adiadas, projectadas para fazer quando houver tempo.
E no entanto, o tempo continua a existir, é a nossa percepção dele que muda, a nossa utilização dos intervalos e espaços que ele nos permite que se transforma e a necessidade de priorizar modifica a posição em que colocamos cada coisa nas intermináveis listas mentais que se fazem e refazem diariamente: a fazer já, a não fazer, a fazer um dia se...
E neste momento em que a breve viagem do J. me deixa numa temporária situação de mãe solteira, a percepção dos instantes que se escapam do controle dos nossos relógios idiossincráticos é ainda mais vívida. Tudo parece esvair-se ainda mais rapidamente. Não que o pequeno A. me ocupe mais tempo que o que ocupava anteriormente, mas porque a não divisão das tarefas, a não partilha dos ritmos, prolonga os afazeres, estica-os em horas mais longas, exige relógios ainda mais elásticos.
E estes espaços de suspensão com capacidades elásticas de dilatar os pequenos e grandes dias, como foi durante algum tempo este blog, perdem ainda mais validade, tornam-se um extra difícil de manter e alimentar e na verdade ajudam a acentuar a referida sensação de que o que não é um grande acontecimento não é fundamental para relato, não tem validade, não é relevante.
E no entanto há milhares de pequenos momentos poéticos e potencialmente literários nos pequenos afazeres, gestos e carinhos de todos os dias. Eu própria gosto de os encontrar nas escritas dos outros, nos relatos e diários íntimos espalhados pela ciberesfera. e é então nesses momentos em que furtiva espio a intimidade (pública) dos outros e reencontro a beleza do quotidiano simples e honesto, que me pergunto porque perco eu esta capacidade de me voltar a deliciar com a pequena escrita (um acto egoísta, reconheço).
E vêm-me estas ganas de retomar o tec tec repetido do teclado, essa performance ritmada e apaziguadora quando votada à esfera pessoal dos pequenos instantes (sim que o tec tec ritmado da escrita de trabalho também tem existência diária mas falta-lhe essa dimensão libertadora).
Talvez por isso hoje tenha decidido vir aqui.
Para contar coisa nenhuma.
Somente pelo prazer de poder escrever e perceber que, afinal, ainda conheço o caminho das pequenas letras (e me sabe bem voltar a exercitá-lo).
Tenham um dia do tamanho das vossas vontades.
Etiquetas: maternidade; tempo; prazer
2 Comments:
At 11 maio, 2010 11:59, encantada said…
E que prazer é voltar a ler-te!
At 03 junho, 2010 21:53, Emilie said…
Olá, me chamo Emilie, sou do Brasil e nem sei como vim parar por aqui... Me encontrei em suas letras, de me tornei mãe muito jovem e senti o tempo e as possibilidades ficarem pra depois... depois me mudei da maior cidade do Brasil para um cidade de praia bem pequenina no estado do Rio de Janeiro, e lá re-aprendi o tempo... Mas na verdade, decidi escrever mesmo, para lhe fazer uma indicação de leitura. Não lhe conheço, não sei se gosta de poesia, nem se já conhece o autor que lhe proponho, mas foi irresistível o desejo de compartilhar meu poeta preferido com você, que mesmo sem conhecer foi como se encontrasse um amigo. Bom, o poeta é brasileiro e se chama Manoel de Barros... imagino que vc vai gostar muito.
Segue um aperitivo (que difícil escolher uma coisa só, ele é tão bom):
“Para entender nós temos dois caminhos:
o da sensibilidade que é o entendimento do corpo;
e o da inteligência que é o entendimento do espírito.
Eu escrevo com o corpo.
Poesia não é para compreender,
mas para incorporar.
Entender é parede; procure ser árvore.”
Depois me conte se gostou...
Um beijo
Emilie
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