Em Figueira, pequena aldeia com casas brancas, um café central e uma fila de cadeiras de plástico descoloridas pelo sol na esquina da rua principal à espera dos velhos ao fim da tarde, existe uma escola primária pequena.
Edifício Estado Novo, como tantas, pátio com arvoredo e uma belíssima casa na árvore.
Nesta escola não sei quantos miúdos andarão (calculo que poucos a pensar na tendência actual das zonas rurais e despovoadas, que isto são terras de pouca gente no inverno e muitos visitantes de passagem no Verão e isso certamente não aumenta a natalidade local!). Mas esses poucos brincam num pátio espantoso, com árvores grandes, uma carroça a sério, uma casa na árvore com baloiços, cordas e estruturas de madeira feitas artesanalmente.
Sonhei com uma casa na árvore toda a minha infância.
Nos livros de aventura ingleses todos os miúdos pareciam ter uma, sítio de encontros secretos, acampamentos nocturnos e, acima de tudo, um refúgio só deles onde os adultos não entravam e o mundo se dominava de cima e por isso se transformava num espaço diferente. Como nunca tive uma casa na árvore passei o tempo a subir aos telhados, saltando de casa em casa na terra do meu pai, sentindo o calor das telhas e fazendo equilibrismo sobre os muros de ligação.
De bicicleta descobria caminhos secretos à beira das arribas e os meus pés conheciam todos os carreiros proibidos nas falésias. Agora que tenho um filho penso como podia ter sido perigoso mas na altura era uma forma de conquistar o mundo e a independência, uma forma de consciência que tinha que ver com a percepção e domínio dos limites (o perigo era necessário para esta percepção mas na verdade nunca me coloquei verdadeiramente em risco - o medo impediu-me sempre de o fazer. Era maior o prazer do secreto e da aventura que o da rebeldia inconsciente).
Esta casa na árvore permite certamente que cada intervalo escolar se transforme neste espaço com que eu tanto sonhava. Quem a fez, e na verdade tem ar de ser uma obra coleciva de miúdos, professores e pais, sabia que não há como estes espaços-refúgio onde a aventura se sonha tanto quanto se torna real, para fazerem crianças felizes.
E não é preciso grandes equipamentos, nem chão forrado com superfícios almofadadas, nem degraus de altura constante e homologada para fazer com que a segurança seja uma realidade. A segurança aprende-se, pratica-se, pode andar de mãos dadas com a liberdade e com o risco. É justamento do confronto com o risco que nasce a tomada de consciência que permite fazer disso uma aprendizagem e uma competência para a vida.
Quem nunca subiu a uma árvore, andou por caminhos proibidos e saltou de bicicleta que venha clamar cegamente por regras e legalidades quanto às superfícies que devem cobrir os pátios dos recreios.
A escola do A. tem o chão coberto do pavimento obrigatório nos parques infantis e infantários. Pavimento nórdico, feito para países com pouco sol e que por isso absorve o calor, incha, quebra, enrijece no contacto com este nosso sol abrasador de Europa do Sul. O pátio, já de si pequeno, é assim tão insuportavelmente quente que os miúdos não podem brincar senão de manhãzinha.
Olhando para este pátio da escola primária de Figueira pergunto-me se não deveria prevalecer mais sensatez nestes ditames e louvo a visão de quem entende que a infância é uma época de exploração e de risco (controlado é certo, mas não necessariamente homologado) e admiro o trabalho colectivo colocado na construção desta visão. Aqui crescerão miúdos satisfeitos e desenrascados, com uma relação com os recursos naturais mais sadia e realista. Oxalá saibam continuar a crescer assim.
A propósito do tema da segurança
este livro (não é maravilhoso mas toca em questões interessantes).
Um apontamento de Daniel Sampaio sobre o tema da segurança
aqui.
Etiquetas: infância; liberdade, maternidade, segurança