Sonhei uma vida inteira com as urbes europeias onde tudo se faz de bicicleta.
Anseio por isso por ciclovias, parques para bicicletas, gentes de todas as idades a dar ao pedal, vento na cara e cestos para as compras no guiador.
Lisboa é uma cidade difícil, cheia de colinas, carros, trilhos de eléctricos, passeios com carros estacionados e uma desatenção crónica ao peão e, por extensão, ao peão em upgrade, que é mais ou menos o estatuto de um ciclista na grande urbe.
Ainda assim, Domingo, manhã cedo, com a humidade condensada frente à boca em cada expiração, lá fomos nós, bicicleta pela mão, tentar a nossa sorte.
Começámos pelo metro, que à noite e aos fins de semana deixa transportar bicicletas, mas se esquece que isso implica ter os canais especiais em funcionamento e nos obrigou, portanto, a verdadeiras acrobacias para podermos sair e entrar das estações.
Vencidos os primeiros obstáculos e os olhares de estranheza dos outros utentes, começámos a pedalar na Rua do Ouro, rumo ao Terreiro do Paço, Jardim do Tabaco e Santa Apolónia.
O objectivo era chegarmos à Expo (sãos e salvos de preferência) e perceber se haveria algum percurso alternativo para o fazermos em segurança.
Por alturas de Santa Apolónia começamos a ver mais ciclistas e percebemos que há uma estrada secundária que percorre todo o terminal TIR ao longo do Tejo.
Inflectimos portanto para a direita na Bica do Sapato e daí para a frente são
12 quilómetros de caminho fácil e ininterrupto até à ponta Norte da Expo, numa experiência esteticamente estranha mas estimulante que permite breves momentos ladao a lado para dois dedos de conversa durante a pedalada.
À nossa volta o cenário oferece zonas industriais, carris abandonados, vagões de mercadorias, silos e contentores.
É uma outra Lisboa, bruta, metálica, meio abandonada, pontuada pelo calor humano dos ciclistas que passam e se cumprimentam uns aos outros num sorriso de cumplicidade.
O percurso tem algo de iniciático, de clandestino e talvez por isso a chegada à expo seja tão desconcertante: uma lufada de vida, cor e movimento, onde os ciclistas iniciados (essa comunidade que conhece e partilha o caminho e se cumprimenta num ritual de reconhecimento e pertença) se diluem na multidão que pedala, patina e passeia um pouco por todo o lado.
Mais à frente, já junto a Sacavém, no extremo final do recindto da Expo, um pai e um filho de 8 anos pedalam lado a lado e conversam animadamente. Uma frase solta-se no ar, mais nítida quando os ultrapassamos: "Olha por exemplo o caso da Irlanda. Os protestantes e os católicos também ainda não resolveram os problemas..."
Entreolhamo-nos.
Muito se aprende em cima do selim, a bicicleta inspira as conversas mais incríveis!
Quantos outros caminhos clandestinos (ciclovias possíveis?!) haverá escondidos por Lisboa?
Na minha caminhada matinal, não há dia em que não veja um ou dois ciclistas solitários que insistem em criar uma alternativa ao trânsito no centro da cidade, uma alternativa não poluente, sem ruído, sem engarrafamentos nem problemas de estacionamento.
Temerários que desafiam a topologia e o suposto bom senso pragmático que teima em afirmar que Lisboa não é uma cidade ciclável.
Quanto a mim, tenciono pôr-me ao caminho mais vezes e garanto que o cestinho para o guiador já está na minha lista de compras.