Dias mãeores

um blog de mãe para recuperar o tempo perdido em dias sempre mais curtos que o desejado

segunda-feira, março 17, 2008

dias de neve









O reencontro com a neve é sempre um misto de excitação infantil e contemplação exaltada.
Há algo de irreal neste branco extremo que fere os olhos e veste o mundo de tons azulados, arredondando e adoçando as montanhas mais agrestes.

Avoriaz fica nos Alpes franceses junto à fronteira com a Suíça.
Aqui os carros não podem circular e toda a pequena aldeia de madeira se faz a pé, de esquis, de snowboard, de trenó ou de autocarro de lagartas.
A toda a volta, a cordilheira recorta-se contra o céu em picos enfarinhados a perder de vista.
Para quem vive, como nós, em países sem neve, o primeiro impacto é sempre apalermado e feliz.
Uma espécie de mergulho na aldeia do Pai Natal onde as compras se fazem enterrando os pés na neve fofa nas pequenas caminhadas que nos levam ao supermercado ou à padaria.

Os dias de esqui, esses, pertencem a uma outra dimensão de vivência da montanha, menos infantil e extasiada, em que o equilíbrio entre o medo e o prazer nem sempre se estabelece de forma fácil, mas que permitem o acesso a espaços de paisagem magnífica e tempos de deslizamento em que o movimento do corpo se torna leve e ondulado. (e o vinho quente, com especiarias, ajuda!)

sábado, março 08, 2008

trocar de alma



Durante os próximos dias trocarei o bulício da cidade pelo branco nevado das montanhas, o bafo quente sobre as mãos, o gelo nas janelas, e o mergulho no horizonte alvíssimo, como um renascer permanente na luz límpida das manhãs.

Espero regressar de alma nova!

Até breve!

quarta-feira, março 05, 2008

Danças e contradanças

Não me lembro que idade tinha quando o meu pai me ensinou a dançar a valsa.
Sei que gostei desde logo da cadência do corpo, da harmonia dos movimentos na música, da sabedoria contida nos passos, voltas e reviravoltas.

Ao longo do tempo aprendi outros ritmos mais libertadores mas manteve-se o gosto pelas danças com par em que a cumplicidade se faz coreografia e a promessa de liberdade imensa que habita o ritmo tornado corpo se torna contenção e passa a ter espelho e ressonância no outro que contradança connosco.

A dançar se fizeram as primeiras aproximações dos rapazes e em Vale do Paraíso, nas férias de Verão, a descoberta fazia-se em matinés de garagem onde a transgressão possível tomava a forma de slows ao som dos sucessos da rádio.

Aos bailes oficiais, na Sede da Banda, ia-se nos dias de festa sob a supervisão vigilante das mães, tias e avós que não deixavam que entre os adolescentes na pista se desenhassem mais do que danças aparentemente inocentes, sem que na verdade isso impedisse que os códigos de cumplicidade e insinuação se estabelecessem entre os parzinhos em formação. Parte do flirt e do jogo estava justamente neste ludibriar dos olhos vigilantes através de códigos subtis de que apenas nós detínhamos a chave e que se concretizavam em beijos apressados e abraços urgentes no escuro do parque infantil, nos breves intervalos da banda em que a vigilância afrouxava e nos eram permitidas desculpas mal inventadas para sair do espaço de controle.

Foram poucas as vezes em que a sensação de liberdade total na dança me habitou por completo. Acho que me ficou sempre este olho condenatório que procura anular parte do prazer com a hiperconsciência da sensualidade do corpo e a presença dos outros em torno da pista.

O gosto, esse continua-me na pele e na alma.
Uma vontade irresistível de dançar de qualquer maneira mal a música convida, como uma espécie de estado de felicidade instantâneo (o mais próximo que recordo da capacidade infantil de entrega na hora de brincar). Em bailaricos, em festas, em bares, em todos os espaços onde a música surge como sugestão de passos, abraços e movimentos ritmados.
Com os olhos abertos na festividade do momento, sozinha, com par, em grupo.
De olhos fechados quando a zona de escrutínio cessa e finalmente se desliga o fio pensante que tolhe e analisa tudo.

Redescobrir a dança nestes últimos dias em que os deuses andaram distraídos e me proporcionaram salsas, bourrés e outros passos europeus, relembrou-me tudo isto.
Como é possível que me tivesse esquecido!

(e pergunto-me se os adolescentes actuais ainda dançarão slows, e se conhecerão a espera ansiosa da música calma que nos permitia, finalmente, dançar agarradinhos!...)

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Sabedoria



Desenhar zonas de silêncio e apaziguamento mesmo no turbilhão da dança dos dias.

segunda-feira, março 03, 2008

a escrita que nos desenha

Lembro-me do tempo em que a escrita me surgia simultaneamente das ideias e da coreografia da mão a desenhar no papel.
Por vezes, era justamente a mão quem ditava as regras, criando ritmos, correndo veloz a vencer a inércia do papel branco e do bico da caneta. Numa luta tensa entre o ritmo do pensamento e a capacidade física dos dedos abraçados ao corpo do riscador.

Nunca tive uma letra bonita, nem quando aprendi a escrever.
Acho que esta luta permanente entre a cabeça e a mão nunca me deu tempo para aperfeiçoar o desenho das letras e elas acabaram sempre por me sair assim aos bicos, irregulares e imperfeitas.

Quando passei da primária para a preparatória esforcei-me, como quase toda a gente, por encontrar uma nova letra mais conforme à minha nova condição de não-criança.
A identidade faz-se nesse período, entre outras guerras, dos muitos ensaios de assinatura - folhas e folhas com assinaturas complexas e rebuscadas, ora inclinadas para a esquerda, ora inclinadas para a direita, povoadas de arabescos impossíveis de repetir - e da tentativa de encontrar uma linha que nos limite as palavras num desenho que nos delineie crescidos e capazes de enfrentar o mundo.

A minha passou por uns dias de bolas redondas (como todas as miúdas) até que a minha mãe se zangou comigo por estar a procurar imitar os outros em vez de procurar uma escrita própria e me reconduziu na senda de agarrar nas raízes bicudas e imperfeitas que costumavam sair das minhas canetas e transformá-las nalgo melhor mas meu (se esse era verdadeiramente o meu desejo).

Foram semanas de busca ansiosa.
E mais uma vez, páginas e páginas de letras escritas a verde, azul e roxo, ora inclinadas para a esquerda, ora para a direita, alongadas, espalmadas (tudo menos bolas redondas e desprovidas de identidade própria!), com canetas finas, canetas grossas, de feltro, bic (laranja e cristal) à procura da escrita perfeita.
Nunca percebi se a encontrei realmente, mas houve um dia em que gostando do que vi me deixei de mais demandas e adoptei os rabiscos elegantes (ligeiramente alongados e inclinados para a direita) como meus.

Nos primeiros dias o cérebro debateu-se arduamente com a mão, lenta como seria de esperar na habituação à nova escrita. Mas logo, logo a mão foi encontrando saídas, desvirtuando o bonito traço inicial na tentativa de responder ao ritmo alucinante do pensamento, e as novas linhas alongadas, elegantes e ligeiramente inclinadas, deram lugar a bicos subversivos e irregularidades que tomaram de assalto tudo o resto, nos anos que se seguiram (excepto nas cartas de amor, que escrevi abundantes, e nas quais o desenho das palavras procurava corresponder à elevação dos sentimentos)

Ainda hoje invejo as escritas bonitas que sobreviveram ao que a minha nunca foi capaz. Olho gulosa os traços doces da escrita da A. e da S. que transformam qualquer palavra numa imagem clara e bonita de si mesma.
A minha só piorou e os rabiscos que ainda faço tornam-se facilmente incompreensíveis, mesmo para mim, se não escolher canetas de traço fino e fluido que ajudem a controlar a rapidez e impaciência do gesto.
As ideias correm-me velozes e a mão nunca o conseguiu fazer ao mesmo ritmo.

Socorro-me assim do teclado e deste martelar ritmado que responde rapidamente aos impulsos e me esconde a inabilidade atrás de letras convencionais e anónimas (desculpa mãe, é a versão pós-moderna da letra redonda!).
E não consigo deixar de tirar prazer disso, perdendo inexoravelmente a intensidade da relação com o desenho coreográfico das letras no papel, as carícias da mão na caneta.

Hoje em dia, as folhas em branco intimidam-me mais que o écran por escrever.

Na verdade não sinto saudades dessa escrita mais demorada pois facilmente me embalo na cadência ritmada e reconfortante dos dedos a percutirem as teclas.

tec, tec, tec, tec, tec, tec...

As polpas dos dedos a tactearem suaves nos momentos de pausa em que o teclado respira comigo.

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sábado, março 01, 2008

O teu olhar sustenta o céu imenso



"Andas pela casa com passos leves,
pousas a mão no colo, sorris. E eu
acredito que o mundo te acompanha.
Como ecos do que fazes, formam-se
nuvens sobre o mar e cantam pássaros
em países distantes. Sei que é assim.
O teu olhar sustenta o céu imenso,
a luz dos astros, todas as galáxias."

José Mário Silva, Nuvens e labirintos


que prazer folhear um livro e encontrar palavras como carícias
em páginas alheias...

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