Lembro-me do tempo em que a escrita me surgia simultaneamente das ideias e da coreografia da mão a desenhar no papel.
Por vezes, era justamente a mão quem ditava as regras, criando ritmos, correndo veloz a vencer a inércia do papel branco e do bico da caneta. Numa luta tensa entre o ritmo do pensamento e a capacidade física dos dedos abraçados ao corpo do riscador.
Nunca tive uma letra bonita, nem quando aprendi a escrever.
Acho que esta luta permanente entre a cabeça e a mão nunca me deu tempo para aperfeiçoar o desenho das letras e elas acabaram sempre por me sair assim aos bicos, irregulares e imperfeitas.
Quando passei da primária para a preparatória esforcei-me, como quase toda a gente, por encontrar uma nova letra mais conforme à minha nova condição de não-criança.
A identidade faz-se nesse período, entre outras guerras, dos muitos ensaios de assinatura - folhas e folhas com assinaturas complexas e rebuscadas, ora inclinadas para a esquerda, ora inclinadas para a direita, povoadas de arabescos impossíveis de repetir - e da tentativa de encontrar uma linha que nos limite as palavras num desenho que nos delineie crescidos e capazes de enfrentar o mundo.
A minha passou por uns dias de bolas redondas (como todas as miúdas) até que a minha mãe se zangou comigo por estar a procurar imitar os outros em vez de procurar uma escrita própria e me reconduziu na senda de agarrar nas raízes bicudas e imperfeitas que costumavam sair das minhas canetas e transformá-las nalgo melhor mas meu (se esse era verdadeiramente o meu desejo).
Foram semanas de busca ansiosa.
E mais uma vez, páginas e páginas de letras escritas a verde, azul e roxo, ora inclinadas para a esquerda, ora para a direita, alongadas, espalmadas (tudo menos bolas redondas e desprovidas de identidade própria!), com canetas finas, canetas grossas, de feltro, bic (laranja e cristal) à procura da escrita perfeita.
Nunca percebi se a encontrei realmente, mas houve um dia em que gostando do que vi me deixei de mais demandas e adoptei os rabiscos elegantes (ligeiramente alongados e inclinados para a direita) como meus.
Nos primeiros dias o cérebro debateu-se arduamente com a mão, lenta como seria de esperar na habituação à nova escrita. Mas logo, logo a mão foi encontrando saídas, desvirtuando o bonito traço inicial na tentativa de responder ao ritmo alucinante do pensamento, e as novas linhas alongadas, elegantes e ligeiramente inclinadas, deram lugar a bicos subversivos e irregularidades que tomaram de assalto tudo o resto, nos anos que se seguiram (excepto nas cartas de amor, que escrevi abundantes, e nas quais o desenho das palavras procurava corresponder à elevação dos sentimentos)
Ainda hoje invejo as escritas bonitas que sobreviveram ao que a minha nunca foi capaz. Olho gulosa os traços doces da escrita da A. e da S. que transformam qualquer palavra numa imagem clara e bonita de si mesma.
A minha só piorou e os rabiscos que ainda faço tornam-se facilmente incompreensíveis, mesmo para mim, se não escolher canetas de traço fino e fluido que ajudem a controlar a rapidez e impaciência do gesto.
As ideias correm-me velozes e a mão nunca o conseguiu fazer ao mesmo ritmo.
Socorro-me assim do teclado e deste martelar ritmado que responde rapidamente aos impulsos e me esconde a inabilidade atrás de letras convencionais e anónimas (desculpa mãe, é a versão pós-moderna da letra redonda!).
E não consigo deixar de tirar prazer disso, perdendo inexoravelmente a intensidade da relação com o desenho coreográfico das letras no papel, as carícias da mão na caneta.
Hoje em dia, as folhas em branco intimidam-me mais que o écran por escrever.
Na verdade não sinto saudades dessa escrita mais demorada pois facilmente me embalo na cadência ritmada e reconfortante dos dedos a percutirem as teclas.
tec, tec, tec, tec, tec, tec...
As polpas dos dedos a tactearem suaves nos momentos de pausa em que o teclado respira comigo.
Etiquetas: escrita; identidade; tempo