Sempre gostei da força contida nas palavras do Torga.
Um homem que decide reinventar-se com nome de urze rasteira, resistente aos ventos, capaz de sobreviver às violências da intempérie, só podia responder a um apelo telúrico.
A poesia nunca cessará de me fascinar pela capacidade que tem de franquear as portas da alma e do mundo como nenhuma outra arte.
A palavra esgrimida como arma nas múltiplas batalhas da condição humana.
Orfeu Rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que ha' gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legitima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
Miguel Torga (1958)