Dias mãeores

um blog de mãe para recuperar o tempo perdido em dias sempre mais curtos que o desejado

segunda-feira, outubro 31, 2005

caixas de memórias


Lourdes Castro, Caixa verde, 1963


A cultura material dos povos funciona como uma extensão da sua identidade, como se o que somos precisasse de matéria para se ancorar na vida e perdurar no tempo.
Um lastro feito de memórias-objecto, pequenas caixas, gavetas, armários, arquivos para etiquetar e arrumar identidades e experiências.

Despejar uma casa é um exercício de exorcização, dissipando fantasmas e largando amarras. (seremos capazes?!)

Do que fica, do que resiste ao difícil exercício de alienação resultam novas caixas, fragmentos, fantasmas de bolso, memórias portáteis feitas objecto, memorabilia, pequenos fetiches de viagem, caixas de sapatos grávidas de histórias, camadas arqueológicas na gaveta dos fundos... à espera de novo despejo.


E no entanto, se a vida coubesse realmente toda numa caixa de sapatos, o que lá colocaríamos?

domingo, outubro 30, 2005

cuidado com as omoletes!



desculpem não resisti!

quinta-feira, outubro 27, 2005

águas vivas





(expo, outono 2005)

quarta-feira, outubro 26, 2005

águas claras









(expo, outubro 2005)

terça-feira, outubro 25, 2005

poesia ao pequeno almoço



Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sonho

Mia Couto
Raiz de Orvalho e Outros Poemas, Out. 1979

quinta-feira, outubro 20, 2005

Pára-me de repente o pensamento...


Ainda a propósito do post anterior partilho convosco este excerto:

"Pára-me de repente o pensamento...
- Como se de repente sofreado
Na Douda Correria... em que levado...
- Anda em Busca... da Paz... do Esquecimento"

Ângelo Lima, Poesias Completas


De facto, se no universo tudo tende para a entropia como poderíamos nós tender para o equilíbrio?

O relaxamento e a paz interior são algumas das grandes utopias do século XXI.
Quanto ao Oriente, serve-nos pelo menos como referente simbólico, nem que seja porque nos obriga a pensar noutras lógicas e noutros ritmos.

segunda-feira, outubro 17, 2005

Oriente-Ocidente



Corri esbaforida passeio fora na tentativa de atrasar os ponteiros do relógio. Maldice todos os semáforos que se puseram vermelhos para os peões e me atrasaram ainda mais a marcha, atravessei sem ser a minha vez esquivando as buzinadelas e reclamei contra todos os carros mal estacionados em cima do passeio que me obrigavam a múltiplos ziguezagues.

Tinha marcado uma massagem com pedras quentes e frias porque precisava muito de relaxar e encontrar tempo só para mim e por isso corria agora deitando os bofes pela boca.

Lá dentro a moça tailandesa acabava de deixar o último cliente deitado na calidez do gabinete e saíra com pezinhos de veludo para descansar um bocadinho antes da próxima sessão.
E foi aí que entrei de rompante numa lufada de desassossego.
Era preciso esperar, o último cliente chegara atrasado e ainda estava a descansar.
Vermelha, suada e esbaforida reprimi mais uma maldição e tratei de resolver mais uns assuntos ali perto enquanto não chegava a minha vez.
Descansar na sala de espera não me dava jeito e assim ainda tinha tempo de ir pagar umas coisas ao multibanco e telefonar para o trabalho a dar umas últimas instruções.
Vinte minutos depois voltei a entrar com ar de urgência, ainda vermelha das múltiplas correrias.

Já estava tudo a postos e mandaram-me entrar no espaço minimal do gabinete, com som de água corrente e pétalas espalhadas pelo chão.
Foi aí que me lembrei que secalhar era melhor ir à casa de banho antes e pedi para voltar a sair esbarrando com a pacata moça tailandesa e espalhando o conteúdo da mala pelo chão. Dez maldições reprimidas e mais de cinquenta idas e vindas por causa das coisas caídas depois, pude finalmente entrar e respirar fundo.
Agora é que é, pensei, e esforcei-me por me colocar em estado zen.

O espaço estava na semi-obscuridade, uma música suave soava baixinho e uma pequena fonte fazia o som da água a correr que já tinha ouvido antes. O chão e a marquesa tinham pétalas vermelhas espalhadas de forma harmoniosa e o tempo parecia correr a outro ritmo dentro da salinha aquecida.
Mandaram-me despir e deixaram-me só.

Ao princípio foi fácil (despir-me eu sabia) mas depois começaram as dúvidas: devia vestir o roupão para estar mais composta (não me apetecia ficar ali meia nua)? E depois como é que ela faria a massagem, teria de me despir outra vez? Deveria ficar assim à espera dela? Devia deitar-me?
Optei por deitar-me na marquesa de roupão e esperei fazendo respirações profundas para me preparar para o momento de escape.
Quando ela entrou retirou-me o roupão e começou a mexer nas pedras.
O traquetear da pedras a baterem umas nas outras dentro de água deixou-me curiosa e com vontade de olhar mas obriguei-me a ficar quieta, expectante, enquanto milhares de ideias começavam a povoar os meus pensamentos.
O repentino contacto frio na pele cortou momentaneamente este chorrilho de pensamentos centrando-me nas sensações.



O posicionamento das pedras era curioso pois obedecia aos chacras e mais uma vez o cérebro se lançou à desfilada: para que serão as pedras? porque serão frias? isto é um bocadinho desagradável assim frio. Será que vai ficar assim muito tempo? O que é que é suposto sentir? Será que é para a pessoa relaxar e se preparar para o resto da massagem?

Quando me apercebi de que o meu cérebro não parava procurei fazer exercícios respiratórios novamente e abstrair-me dos pensamentos. Foi aí que comecei a sentir frio e que ela me começou a massajar com óleo e com pedras quentes e frias.
As sensações eram estranhas, alternando entre o conforto e o desconforto. O frio persistia e eu não conseguia abstrair-me disso.
Deveria dizer alguma coisa? Seria normal?

As mão pequeninas, leves e suaves da massagista contrastavam com o meu corpo grande e desajeitado ali deitado numa marquesa à justa para mim. Senti-me dividida entre dois tempos, o ritmo frenético dos meus pensamentos e a calma suave e metódica da massagem.

Procurei abstrair-me do desconforto durante alguns instantes e entregar-me a essas mãos de movimentos circulares. Mas como as sensações continuavam a deixar-me dividida entre o prazer e o desprazer recomecei a pensar noutras coisas.
E assim enquanto ela me estimulava os chacras e me aplicava uma terapia de relaxamento eu revi o trabalho da semana, as coisas que ainda precisava de fazer, os planos para o fim-de-semana, os amigos a quem já não falava há muito tempo, as coisas de que não me podia esquecer até que ela me bateu levemente no ombro e me disse que estava na hora de me virar para baixo.

Nesta posição a minha cabeça encaixou numa ranhura da marquesa que me deixava ver duas flores dispostas num arranjo simples, tudo pensado para infundir a sensação de calma, harmonia e beleza.

Esforcei-me então por voltar a fechar os olhos e fruir o momento mas os olhos não se mantinham fechados nem 10 segundos e começaram a explorar o que era possível através da ranhura: as tomadas eléctricas, as toalhas dobradas, os pés da bancada, os pés pequeninos e sinuosos da terapeuta na sua dança em torno de mim, as pétalas do chão.

Quando terminou, a moça sussurrou-me que podia ficar ali o tempo que quisesse a descansar e desapareceu com pés de lã.
Fiquei ali, quieta, a perguntar-me que horas seriam,quanto tempo é que uma pessoa deveria ficar ali, se haveria duche para tirar os óleos, se me viriam chamar.

Como ninguém aparecia vesti-me e saí para a sofisticada zona da recepção.
O óleo no corpo fazia comichão e tornava a roupa incómoda, a massagem deixara-me inchada e com uma sensibilidade dolorosa.
Seria normal?

Tentei parecer relaxada e quando me perguntaram se tinha gostado e se tinha sido bom disse que sim.

Ofereceram-me chá verde na pequenina salinha de espera onde corria água numa fonte japonesa de pequenos seixos rolados.
A moça tailandesa nunca mais voltou a aparecer e eu continuei ali bebendo o meu chá verde, a tentar parecer relaxada e a pensar nas horas, no que ainda tinha para fazer e no que deveria ter sentido lá dentro, tão deslocada como uma cegonha no meio de pardalitos.

Despedi-me, abri a porta que me protegia do bulício exterior e uma vez lá fora, determinada, caminhei rapidamente na renovada tentativa de atrasar os ponteiros do relógio.
Com passos rápidos e tenazes, ziguezagueando entre os carros mal estacionados e o som insistente das buzinas, sonhando com um momento de relaxamento em que tenha tempo só para mim... de olhos postos no Oriente. Esse mito?!

quinta-feira, outubro 13, 2005

Primeiro livro de leitura - 1907



Lição - 1ª classe da escola primária (1907)

Para que vimos à escola

Vimos à escola porque desejamos aprender a ler e a compreender o que lemos.

Quando saírmos da escola, não teremos o nosso professor para nos ensinar. Como sabemos ler, compraremos livros e nêles aprenderemos muitas coisas úteis.

Vimos tambêm à escola para aprender a escrever bem e sem erros.

Quando estivermos longe dos nossos queridos pais ou dos nossos amigos, como sabemos ler, e escrever, podemos enviar-lhes notícias nossas e receber as suas cartas.

Vimos à escola para aprender a contar.

Quando formos homens poderemos negociar e fazer as nossas contas sem o auxílio de ninguêm.

Ainda aprendemos na escola muitas outras coisas mais, que precisamos saber, e que nos serão muito úteis pela vida adiante.

"O saber não ocupa lugar"

Guardai para vós os conselhos que dais aos outros.

Ouvi muito e não faleis senão a propósito.


Fim da lição!
E assim se estabeleciam os pilares básicos da função da escola (ensinar a ler, escrever e contar) nos primórdios do século XX, no livro da primeira classe do meu bisavô.
Depois da invenção dos computadores, dos correctores ortográficos,da internet, do e-mail e das calculadoras o que pensar sobre as razões aqui apontadas para se aprenderem estas 3 competências tão básicas?

segunda-feira, outubro 10, 2005

Sinfonia animal



Grande descoberta que muito me ilustrou sobre a magnífica língua portuguesa.

Vozes de alguns animais:

A águia: grita
A andorinha: trinfa, trissa ou gazeita
O camelo: bladera
A cegonha: grita, glotera
O chacal: chora, uiva
O chasco: chasqueia
A cigarra: fretine
O cisne: arensa
O coelho: chia, guincha
O corvo: crocita
O crocodilo: chora
O cuco: cocula
A doninha: chia
O elefante: barre, urra
O estorninho: pissita
O gaio: grasna
A galinha: cacareja
O galo: cucurita
O gamo: brame
A garça: gazeia
O perú: grulha, Gruguleja
A raposa: regouga
A rola: geme
O tordo: trucila

quinta-feira, outubro 06, 2005

relatividade II




"Nunca me preocupo com o futuro. Ele acaba sempre por acontecer!"
Albert Einstein



À Luz de Einstein - uma exposição a visitar na Gulbenkian.

terça-feira, outubro 04, 2005

Uma pedra no sapato



Gosto quando uma frase nos obriga a deslocar de ponto de vista, quando nos descentra e nos obriga ao exercício enriquecedor da relatividade.
Deparei com esta numa leitura recente.
Trata-se de uma expressão judaica que se usa quando alguém não está muito bom da cabeça e não diz coisa com coisa:
"Ficaste a ler da esquerda para a direita?!"

Afinal o umbigo do mundo está onde nós o colocarmos.
E a fronteira onde situamos a noção de verdade, de correcto, de norma, desloca-se com ele.
Não há como o exercício tenso do movimento pendular entre o centro e as margens para alargar horizontes e fazer pensar nas premissas com que se constroem os sistemas em que todos funcionamos.

A relatividade é uma pedra no sapato do pensamento hegemónico de todas as civilizações.